Começo explicando o jogo, até para deixar mais clara a nossa proposta por aqui. Age of Empires II é um clássico que marcou presença na quinta geração dos games, primeiro no Xbox e depois no PlayStation (anteriormente, era voltado exclusivamente para o PC). Trata-se de um jogo de estratégia em tempo real, ou seja, você vai desenvolvendo sua civilização — produzindo comida, extraindo madeira e metais da natureza — e, posteriormente, militarizando-a e desenvolvendo tecnologias para, assim, poder vencer as outras civilizações, sempre pela força das armas. Nesse contexto, há também campanhas históricas, que inserem você em um “passado”, oferecendo a oportunidade de cumprir missões daquele tempo e daquela civilização.
Em 2023, foi lançada uma expansão — grosseiramente traduzida por mim como Crônicas – A Batalha pela Grécia — cujo primeiro capítulo nos coloca dentro da civilização persa e de sua tomada da Mesopotâmia, mostrando o início da expansão persa, cujo vilanismo foi reforçado por absorvermos apenas as narrativas gregas daquele tempo. É aqui que quero apresentar a vocês uma perspectiva histórica sobre o tema, que o jogo distorce em muitos aspectos, até porque, dentro de sua narrativa, há um interesse de mercado e também a intenção de tornar o jogo mais dinâmico. Logo, não há História aqui — ou seja, você não vai aprender jogando…
Resumidamente, a primeira campanha da DLC é chamada de Prólogo: Portões dos Deuses, e inicia num suposto acampamento persa, em 522 a.C., onde o rei persa Dario envia seu irmão Artafernes para buscar mercenários e reforçar o exército persa na sua campanha de invasão à Babilônia. A página do jogo fala que estes mercenários são espartanos, e, ao longo da campanha, mais mercenários podem ser absorvidos para as tropas de Artafernes. Ah, em dado momento da campanha, outro líder nos é apresentado: ele é o general Dátis, e, juntos, ambos serão os responsáveis por derrubar o palácio central da Babilônia e tomar a cidade para o rei Dario.
O jogo claramente “transformou” por completo a narrativa da tomada da Babilônia pelos persas, seja a partir do ano da conquista (522 a.C.), do uso de mercenários espartanos ou dos líderes presentes (Dario, Artafernes e Dátis). Os eventos históricos são claramente diferentes dessa narrativa.
Se pensarmos numa data adaptada ao nosso calendário, tudo indica que a primeira invasão da Babilônia pelos persas começou em 12 de outubro de 539 a.C. A Babilônia daquele tempo era governada por Nabu-na’id (Nabonido, para os gregos) e seu ambicioso filho, Bel-Sar-Usur, o Belsazar da Bíblia. A dominação da Babilônia nos apresenta duas fontes que indicam certo pacifismo. A primeira é o relato de um sacerdote do templo de Marduk, na Babilônia — ele servia ao próprio rei Nabonido — e, em seus registros, demonstra-se certo pacifismo na dominação persa, já que a população estava descontente com as ações de Nabonido, que desrespeitavam Marduk. Foi com Ciro que o respeito a esse importante deus babilônico retornou. A outra fonte está presente na própria narrativa oficial apresentada por um cilindro de Ciro, uma pesada massa de argila, que conta uma história muito similar à do sacerdote babilônico, acusando Nabonido de desrespeito a Marduk e a outras divindades importantes, e afirmando que Ciro, o Grande, fora recebido com grande alegria pela população da Babilônia. Mas, querem saber? Isso tudo tem muita cara de propaganda — e não podemos terminar nossa história por aqui.
O rei era Ciro, o Grande!
Os persas eram um dos povos nômades que vieram da Eurásia Central para os planaltos do Irã a partir de 5 mil anos atrás. Enquanto os persas se encontraram com civilizações importantes nas quais eles buscaram se espelhar, seus “primos” — os Medos ou Medas — se estabeleceram (mas de forma seminômade) mais ao norte, próximo da fronteira com os assírios, na Mesopotâmia. Todos estes povos nômades se reconheciam como Arya (arianos), termo que remetia a “bons hospedeiros” — nada a ver com aquela historinha nazista de arianos como raça superior tá bom.
E aqui é importante ressaltar que, enquanto os persas ficavam numa região chamada Anshan, próxima à influência de Elam (uma cidade importante que rivalizava com a Babilônia), os medas expandiam seus domínios, aliando-se aos babilônicos e invadindo a Assíria, onde até a capital dos assírios havia sido invadida e saqueada. O poder crescente dos medas permitiu a seu rei, Ciaxares, enxergar os persas como um povo submisso. Porém, além de cobrar tributos dos clãs persas (o povo persa era dividido em vários clãs), o rei meda percebia que a proximidade dos persas com os elamitas deveria ser respeitada e aproveitada. Por isso, outro rei meda, Astíages, vai casar sua filha com um dos chefes dos clãs persas, chamado Cambises, filho de outro chefe guerreiro persa chamado Ciro. Do casamento com a filha do rei meda, Mandane, Cambises I herda privilégios na relação com os medas, expandindo seu poder para os demais cãs e clãs persas. Quando seu filho com Mandane nasce, por volta de 590 a.C. e 600 a.C., ele dá o nome de seu pai ao herdeiro. Surgia, assim, Ciro II, que ficará famoso como Ciro, o Grande.
Eu sei que os persas são vilanizados e transformados em formas grotescas, como no “clássico” filme 300. Mas, diferente do que pensamos, Mandane pôde criar seu filho exclusivamente até os 6 anos. Enquanto ela fiava a lã e preparava os afazeres de sua tribo (naquele tempo, as rainhas trabalhavam normalmente), Ciro a acompanhava. Por isso, ele aprendeu o dialeto meda com a mesma facilidade que a língua persa. Após esse primeiro período com a mãe, Ciro passou a cavalgar e caçar com o pai, por quem, aparentemente, tinha grande afeto. Quando seu pai, o rei Cambises, morre, em 559 a.C., Ciro promove todos os rituais de luto por seu pai, lamentando sua perda.
Aqui vem um elemento importante para esta nossa história: o rei meda, Astíages, estava cada vez mais próximo de invadir a Babilônia de Nabucodonosor e, por isso, pressionava ainda mais os persas, buscando apoio não só através de tributos, mas também de homens para a luta. Nesse contexto, Astíages descontentava a própria nobreza meda e os persas em geral. Por isso, alguns importantes membros tradicionais do povo meda avisaram a Ciro que o apoiariam caso ele invadisse as terras de Astíages. Por outro lado, percebendo a influência de Ciro, Fanaspes, membro de um importante clã persa de Persépolis, arranja o casamento de sua filha, Cassandana. Eles eram de uma das famílias mais importantes dos persas: os aquemênidas. Com Cassandana, vieram quatro filhos; dentre estes, estava Cambises II, o herdeiro do trono.
Então, temos três forças influentes numa região próxima: Astíages e os medas, que se expandiam para territórios da Assíria e miravam na Babilônia; o próprio rei da Babilônia, Nabonido, que disputava regiões do norte da Mesopotâmia com os medas; e, por outro lado, Ciro e os persas, cuja união com os aquemênidas aumentara seu poder e prestígio. Quando Astíages invade Harã (onde havia um templo sagrado para Nabonido), Ciro se aproveita para instigar Nabonido a se unir numa luta contra Astíages. Quando os babilônicos chegam a Harã, os medas já haviam se retirado, pois Astíages mirava enfrentar os persas de Ciro. Em um cilindro babilônico de comemoração a essa vitória, temos uma previsão de triunfo dos persas sobre os Medas.
Os Umman-manda [medos bárbaros para os babilônicos] e os reis que marcham ao seu lado não existem mais. Marduk fará com que Ciro, rei de Anshan, seu humilde servo, avance contra ele [Astíages] com seu pequeno exército. Ele derrubará os numerosos Umman-manda: ele capturará Astíages, o rei dos Umman-manda, e o levara em grilhões para sua própria terra. (pág. 76-77)
Resumidamente, Ciro unifica os persas e outros povos que contrariavam o domínio meda na região, como os partas, hicarnianos e sacas, tudo isso entre 553 e 551 a.C. O inverno e a resistência meda forçaram os persas a retornarem para Parságada, e, em 550 a.C., é Astíages quem os ataca, forçando o recuo de Ciro para as montanhas de Parságada. Nessa retirada, dizem que as mulheres persas gritaram incentivando arduamente os guerreiros persas, que enfrentaram os medas intensamente por dois dias. Essa foi a Batalha de Parságada, que culminou no abandono dos generais de Astíages, os quais se voltaram para o lado de Ciro. Após aprisionar Astíages, Ciro entra na capital real meda — Ecbátana —, retira seu tesouro de lá, recebe homenagens da nobreza meda e até senta no trono do seu avô, para depois retornar a Anshan, prestigiando muito seus apoiadores do clã aquemênida. Essa vitória dos persas não “assustou” os babilônicos; pelo contrário, o rei Nabonido até se retira do trono para cultuar um deus em um oásis da Arábia.
Aliás, Ciro, o Grande, e os persas se ocuparam com Creso, o cunhado de Astíages e rei da Lídia, que, na época, tinha uma população jônica predominante. Ele buscava os espaços antes ocupados pelos medas e, por isso, enfrentou Ciro. Creso foi derrotado em 547 a.C., e uma das estratégias persas foi o uso de camelos, que fizeram os cavalos de Creso refugarem e não entrarem em batalha. Apesar de Heródoto afirmar que Creso foi aprisionado por Ciro, ganhando até mesmo uma cidade local para governar, cilindros da Babilônia afirmam que o rei Creso e sua família foram mortos pelos persas — o que era a tradição da época. A partir daí, Ciro dominava uma grande região do Oriente Médio, cercando o reino neobabilônico, que estava envolto em grande instabilidade, devido às ações do filho de Nabonido, Belsazar. O retorno de Nabonido do seu retiro espiritual em nada mudava, para melhor, a situação na região. Foi neste contexto de instabilidade no império vizinho que Ciro viu a brecha para acabar tomando o poder dessa região.
Ciro o Grande toma a Babilônia!
Então, sabemos de antemão que a primeira invasão persa da Babilônia não foi em 522 a.C., tampouco foi liderada pelo rei Dario, seu irmão Artafernes e seu comandante Dátis. Na verdade, em setembro de 539 a.C. (data baseada nos relatos de Heródoto e calculada segundo nosso calendário), Ciro partia para encontrar as tropas de Belsazar, cujo pai, Nabonido, havia mandado reunir o exército da Babilônia e defender a invasão persa na cidade murada de Ópis — que ficava a uns 80 km ao norte da Babilônia. Nesse caminho, Ciro havia ganhado o apoio de um nobre da Babilônia chamado Ugbrau, que era contrário às ações de Nabonido. É lá em Ópis que ocorre a batalha definitiva, culminando na derrota dos babilônicos, muitos morrendo na fuga. Ao entrar nesta cidade, os persas promovem um grande massacre, mostrando o que aconteceria caso houvesse resistência — uma prática comum nessa época.
Ciro ainda entra na cidade de Sippar, esta tomada sem batalha. E, no dia 12 de outubro de 539 a.C., ele encontraria o restante do exército babilônico, do qual temos poucos relatos, além da tentativa destes de se protegerem nas muralhas da Babilônia. O rei Nabonido iria se refugiar mais ao sul, em Borsippa. A entrada de Ciro na Babilônia tem certa pompa — dizem que ele entrou junto a Cambises, seu filho herdeiro com Cassandana, filha do líder aquemênida —, e percorreu até o coração da cidade, a zigurate voltada para o deus Marduk. No jogo, temos uma representação similar dessa tomada, porém o zigurate é apresentado por uma construção utilizada para representar o Palácio Apadana, construído pelo persa Dario em Susa.
A princípio, a partir da tomada da Babilônia por Ciro, os povos outrora dominados pelo império babilônico, manifestaram sua submissão aos persas, aumentando consideravelmente o poder persa, que a partir daí, também se tornava uma potência marítima, pois os fenícios passariam a fazer parte do seu império.
Na primeira scene de age of empires, dá-se a entender que o perfil do rei persa era o de usurpador, porém, o que podemos perceber é o contrário. Ciro, mantém as religiões em outras regiões, ao ponto que Marduk (principal deus babilônico) é mais respeitado por ele do que pelo antigo rei Nabonido. Outro exemplo é o do retorno dos judeus para Jerusalém e a reconstrução do Templo de Salomão, ações que colocam Ciro numa posição de messias para este povo, mesmo que ele jamais tenha manifestado a crença no judaísmo. Lógico, havia limites – ao nomear o seu filho Cambises como rei da Babilônia, Ciro não vestiu o mesmo com seus trajes locais e sim, com uma veste elamita, como era a tradição persa, mostrando para os babilônios que a partir de agora, eles seriam governados por uma potência estrangeira
Os portões dos deuses: explicando o contexto histórico da invasão da Babilônia em 522 a.C.
Até agora nós reconstruímos um contexto histórico para nos situarmos na primeira campanha do jogo, que é a invasão da Babilônia por Dario em 522 a.C. De muitas formas, podemos criticar essa abordagem do jogo, pois ela ignora o surgimento da Pérsia a partir de Ciro o Grande e de Cambises, mas o jogo também trata os persas de forma vilanizada, então, nos resta tratar essa campanha do jogo sob uma perspectiva histórica.
Ciro o Grande, morre em 530 a.C., e eu não quero me atrever a dizer qual foi a causa da sua morte, isso porque cada historiador grego daquele tempo que relatou o fato, contou o mesmo de uma maneira completamente diferente. Além disso, os persas não falavam da morte dos seus reis e sim da sua vida. Mas só para matar a curiosidade de alguns, o historiador grego Heródoto nos conta que Ciro foi assassinado em batalha pela rainha dos masságitas, chamada de Tomíades, logo após ela se enfurecer em batalha.
Bom, de fato, Ciro deixou Cambises II (seu filho com a aquemênida chamada Cassandana) mas também compensou outro filho – Bardiya, deixando ele como príncipe dos reinos da planície do Irã. E assim o tempo vai passando, Cambises II inicia uma vitoriosa campanha no Egito, onde recebe o auxílio do filho do líder aquemênida Hipastes, um jovem com 22 anos chamado Dario. É no retorno do Egito que Cambises recebe a notícia de que seu irmão Bardiya havia tomado o seu lugar como rei, convencendo parte da nobreza meda e persa. Cambises II decide retornar para confrontar seu irmão, porém, ao subir no cavalo acaba perfurando sua perna com a sua adaga e este acidente se mostra fatal semanas depois, quando este morre devido a gangrena.
E é lá por setembro de 522 a.C. que Bardiya assume o trono no lugar do seu irmão, estabelecendo-se em Ecbátana. Pouco tempo depois, um dos seus sogros em conjunto com os líderes dos principais cãs da pérsia, assassinam Bardiya enquanto eles estava na Babilônia. Um destes assassinos era Dario, que acabou assumindo o trono, iniciando uma nova dinastia no poder – a Aquemênida – e é por isso que no jogo, os persas são chamados de aquemênidas. Agora, começa a fazer sentido a primeira campanha do jogo, porque de fato, em 522 a.C. muitos reinos aliados e vassalos se rebelam, incluindo a Babilônia, onde aparece um tal de Nabucodonossor III tentando tomar o poder. E é dentro desta narrativa do jogo que Dario aparece, derrotando os babilônios e muitos outros povos, numa campanha que a princípio, mostrou-se muito violenta.
REFERÊNCIAS
KRIWACZEK, Paul. Babilônia: a história da antiga civilização da Mesopotâmia. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. 368 p. ISBN 978‑85‑271‑2618‑5.
LLEWELLYN‑JONES, Lloyd. Os persas: a era dos grandes reis. 1. ed. São Paulo: Crítica, 2023. 512 p. ISBN 978‑85‑422‑2384‑2.
WELMAN, Billy. Los Persas: Una guía fascinante sobre la historia del antiguo Imperio Persa y la conquista de Ciro el Grande. [S. l.]: Billy Welman, 2021. E-book Kindle.