As Guerras Médicas (Greco-pérsicas)

Por: João Henrique Couto Scotto

A Batalha das Termópilas

Não temos como ignorarmos a História Grega, tampouco a Batalha das Termópilas, simbolizada como um momento de luta heroica pela liberdade, onde os espartanos, liderados por Leônidas, conseguiram repelir por alguns dias uma “horda” oriental, que transformaria o mundo grego caso conseguisse a vitória. Por isso, a batalha das Termópilas virou um grande instrumento de propaganda, onde a união, a esperança e o sacrifício dos espartanos promoveram a continuidade da cultura ocidental face a superioridade do Império Persa, que para alguns, representava a barbárie e até mesmo um decrécimo civilizacional. Enfim, parece que eu estou descrevendo o filme 300 ou o jogo Assassin’s Creed Odyssey, onde percebemos um heroísmo por parte dos gregos e um vilanismo e monstruosidade atribuídos aos persas. Então, vamos buscar entender um pouco a realidade deste conflito.

A Batalha das Termópilas e a Indústria Cultural

A batalha das Termópilas está presente no nosso imaginário há séculos, seja a partir de relatos exagerados e pró-gregos, como os feitos por Heródoto, assim como pelas pinturas renascentistas e pela História eurocêntrica do século XIX. Porém, essa batalha ainda é objeto de um discurso que valoriza o Ocidente, e a escolha aqui será analisá-la a partir do jogo Assassin’s Creed Odyssey, sem deixar de lado alguns elementos presentes no filme 300.

 

Antes de começarmos, é sempre importante lembrar: as “histórias” presentes nos games e nos filmes têm interesses de mercado que as atravessam. Por isso, a narrativa e as representações existentes nesses produtos são amplamente influenciadas por tais interesses. Ou seja, a história presente nesses produtos da Indústria Cultural é baseada em interesses mercadológicos, em que o conhecimento é utilizado de forma secundária e limitada. Cabe a nós, que consumimos esses produtos, transformá-los em objeto de crítica e reflexão.

Tanto no filme 300 quanto no início da gameplay de Assassin’s Creed Odyssey, observamos claramente que a cidade de Esparta se opõe a um império imensamente superior em tamanho e poder: o Império Persa. No jogo, inclusive, vemos o começo do conflito, com um Leônidas consciente de que sua derrota era inevitável e lamentando não ter pescado com o filho, sim, essa bizarrice acontece, mas faz parte. Tanto no filme quanto no game há uma nítida transfiguração dos persas em monstros invasores e dos espartanos em heróis prontos para o sacrifício pela “Grécia”.

É importante analisarmos que as fontes sobre a batalha derivam praticamente de um único historiador: Heródoto, conhecido no Ocidente como o “pai da História”. Ele relata a visão persa do conflito, descreve suas motivações, a diversidade de povos mobilizados para invadir Atenas e outras cidades gregas, detalha roupas, números de exércitos, locais de batalha e até diálogos atribuídos aos personagens históricos. Trata-se de uma obra impressionante, escrita poucos anos após a batalha, quando ainda havia muitos testemunhos disponíveis. Os demais autores que trataram do tema, como Plutarco e Cícero (exemplos romanos), em nada acrescentaram de relevante, o que indica que seu conhecimento dessa guerra provavelmente provinha do próprio Heródoto. Assim, tanto o filme quanto o jogo têm uma fonte comum, a obra de Heródoto, mas hoje podemos contrapor esses relatos com a arqueologia, confirmando ou negando algumas de suas informações.

A preparação dos exércitos

A partir do relato de Heródoto, nós temos um detalhamento de todos os povos do oriente e ocidente que auxiliaram o rei dos persas a iniciar sua campanha contra os gregos. Somados todos os homens para a batalha, Heródoto nos traz um número de 2.641.010 pessoas e a esse número ele depois acrescenta todo o pessoal envolvido na logística chegando a um total de mais de 5 milhões de pessoas (sem contar as mulheres e os eunucos envolvidos) na campanha persa contra os gregos, e ele nos mostra desta forma:

“Embora o número dos guerreiros fosse assaz considerável, penso que o dos criados que os seguiam, dos tripulantes dos navios de abastecimento e dos outros serviços da frota era maior ainda, ou pelo menos igual. Xerxes, filho de Dario, conduziu, assim, até Sépias e as Termópilas, cinco milhões duzentos e oitenta e três mil duzentos e vinte homens” (HERÓDOTO, História, VII, 186, 1950, p. 590).

Talvez por ser grego, Heródoto superestima o número de persas ao mesmo tempo que subestima o número de gregos, pois no seu cálculo da batalha das Termópilas ele faz uma soma que no total não passava de 7 mil gregos, isso contando com o reforço dos fócios depois da solicitação de Leônidas.  Enfim, no filme 300 nós temos a manutenção desta discrepância, e isso é percebido no tremor de terra que eles sentem ao chegar nas Termópilas, já no jogo, as cutscenes não são suficientes para demonstrar essa monstruosidade numérica. Os gregos que esperaram Xerxes nas Termópilas, eram, segundo Heródoto (História, VII, 186, 1950, p. 596):

[…] consistiam em trezentos espartanos muito bem armados; mil tegeatas e mantineus; cento e vinte homens de Orcomenes, na Arcádia, e outros mil homens do resto da Arcádia;  quatrocentos  coríntios;  dois  flionteus  e  oitenta micênios.  Essas  tropas  vinham  do  Peloponeso.  Havia  ainda vinte beócios, setecentos téspios e quatrocentos tebanos […] Além  dessas  tropas,  haviam  os  Gregos convidado  a  tomar  parte  na  luta  todos  os  guerreiros  dos Lócrios-Opontinos e mil focídios.

Heródoto sabe do exagero numérico quanto aos persas e ele justifica dizendo que até os rios secaram, tamanha a demanda de água. Porém, aqui a gente pode contrapor os números dele a partir de estudos arqueológico que nos trazem uma dimensão possível destas tropas. Por exemplo, a partir de Llewellyn-Jones (2023) nós temos um panorama no qual as tropas persas eram provavelmente próximas a 70 mil homens na infantaria e outros 9 mil na cavalaria. Aliás, historiadores e arqueólogos mais otimistas não costumam ultrapassar a estimativa de 100 mil persas durante a invasão da Grécia.

O Lugar da batalha

Provavelmente, na primavera de 480 a.C., o rei Xerxes partiu de Sárdis, na Ásia Menor (a cerca de 1.200 km de Atenas), com um exército gigantesco, ainda que as proporções apresentadas por Heródoto sejam claramente exageradas. Algo que, no entanto, parece correto em Heródoto é a descrição da variedade das tropas persas. Ao contrário do que o Ocidente costuma imaginar, para os persas essa diversidade representava parte do poder do rei. Podemos observar isso, por exemplo, nas escadarias de Apadana, construídas por Dario e Xerxes na antiga Persépolis. De qualquer maneira, o caminho percorrido por Xerxes partiu de Sárdis, em uma longa marcha até o Helesponto, avançando cerca de 16 km por dia, segundo Heródoto, passando pela Trácia, descendo até a Tessália e chegando finalmente à Hélade. Na travessia do Helesponto, foi realizada uma grande obra de engenharia persa: uma ponte flutuante construída para permitir a passagem do exército, o que causou espanto entre os gregos — como poderiam enfrentar um povo capaz de atravessar até os mares?

As tropas de Xerxes impressionaram muitos povos ao longo do caminho, como os da Trácia, e até mesmo o rei da Macedônia, Alexandre I, que chegou a se encontrar com o monarca persa. Até alcançar a Tessália, Xerxes não enfrentou resistência; ao contrário, conseguiu cooptar diversos gregos e outros povos para se unirem às suas forças. Alguns atenienses, no entanto, estavam decididos a resistir e, com o apoio de cidades como Esparta, começaram a organizar a defesa. Entre as possibilidades de enfrentamento, chegou-se a considerar até mesmo um conflito aberto no Peloponeso. Em Atenas, contudo, Temístocles buscava convencer a Eclésia de sua estratégia: apostar em uma guerra naval, aproveitando a vantagem das passagens estreitas. Sua ideia era concentrar as forças gregas em dois pontos cruciais antes da Ática: o estreito das Termópilas, por terra, e o de Artemísio, no mar. Assim, poderiam enfrentar os persas em condições mais favoráveis. O problema é que naquele período ocorriam os Jogos Olímpicos e também o festival da Carneia, o que fez com que os espartanos autorizassem apenas a partida do rei Leônidas e sua guarda pessoal de 300 homens. Esses, contudo, não lutariam sozinhos, já que receberam reforços de outros contingentes gregos, como vimos anteriormente. Segundo Heródoto, todos os espartanos enviados às Termópilas tinham filhos, ou seja, eram homens com mais de 30 anos.

As Termópilas eram uma passagem costeira estreita: de um lado, montanhas; de outro, um mar calmo. Apenas uma fina faixa de terra separava ambos. Foi ali que os gregos decidiram esperar pela chegada do exército persa.

“No extremo oeste do desfiladeira, de onde Xerxes se aproximava, a entrada tinha apenas um pouco mais de dois metros de largura. Por cerca de um quilômetro e meio, a terra abria-se então por quase quinze metros de largura e culminava em uma cruzeta antiga e dilapidade de pedra, com um portal (o portão de madeira já havia desaparecido). A muralha corria ao longo de um pequeno esporão até o mar. Mais além, havia um monte com pouco mais de 45 metros de altura. Havia ourto trecho de praia com arbustos, levando a uma passagem final a leste com largura suficiente para deixar passar apenas uma carreta. (Everitt, 2019, pág.169)”

A Batalha das Termópilas

Se você viu o filme 300, jogou Age of Empires ou Assassin’s Creed Odyssey, ou até mesmo leu o relato de Heródoto, não vai conseguir pensar que Termópilas representou alguma vitória para os gregos. Claro que, para muitos, ela é sinônimo de resistência dos gregos frente aos bárbaros persas. Mas eu só quero lembrar que, entre os mais variados guerreiros persas, como os Kardakes — soldados da infantaria persa — que utilizavam capacetes macios, armaduras de ferro com placas como escamas de peixe e calças compridas, além de portarem lanças curtas, grandes escudos de vime (spara) e enormes arcos, havia também as tradicionais cavalarias do planalto do Irã, com lanças e arcos para ataques à distância, e até mesmo os Imortais, que não são relatados pelos próprios persas, mas que provavelmente faziam parte daquele mural de ladrilhos azuis em Susa, com homens barbudos pertencentes à elite persa. Além destes, havia milhares de gregos entre os persas, como os tebanos e até mesmo o pessoal de Argos, no Peloponeso, que viam em uma aliança com Xerxes uma forma de benefício futuro. A Batalha das Termópilas não representa a Grécia contra a Pérsia, mas sim a manutenção do poder de Esparta e Atenas sobre outras pólis.

Pessoas, os gregos foram derrotados nas Termópilas, no máximo de forma heróica, mas certamente essa derrota foi devastadora. Claro, a partir de Heródoto, os gregos impuseram terríveis baixas aos persas e, se não fosse por um traidor local (Elfiates), a Batalha das Termópilas teria resultado em uma tragédia ainda maior para Xerxes. E o que temos é o relato de Heródoto sobre a batalha, que se mostra assertivo quanto ao local, pois estudos arqueológicos encontraram fragmentos de pontas de lança persas na região — claro que não no número dos milhões que Heródoto nos contara. De forma geral, ao encontrar os espartanos se preparando para a batalha — fazendo tranças em seus cabelos — Xerxes enviou uma carta a Leônidas exigindo rendição, e ali aparece a resposta clássica: Molon labe – venha e pegue!

Enfim, depois de quatro dias de espera, Xerxes enviou os medos e viu seus homens serem massacrados. Segundo Heródoto, ele observava atentamente a batalha em seu trono e teria se levantado três vezes devido ao desempenho de seus soldados. Leônidas defendia habilmente a passagem e, além disso, havia fortalecido o lugar reformando uma antiga muralha dos fócios, estreitando ainda mais o campo de batalha para os persas, que portavam um armamento mais leve. Os gregos somavam um pouco mais de sete mil homens, todos munidos com o hóplon (um escudo pesado) e suas lanças, que, postas acima dos escudos, mostravam um poder de defesa e ataque formidável.

Enquanto os persas enfrentavam com dificuldade a defesa liderada por Leônidas, alguns batedores persas — Heródoto vai dizer que foi Elfiates — descobriram uma passagem pelas montanhas que os levava através das Termópilas. Durante a noite, Xerxes enviou suas tropas para percorrer a trilha e avançar sobre os gregos. Nesta passagem estavam cerca de mil gregos da Fócida, bem armados, mas que foram pegos de surpresa de madrugada e acabaram subindo a montanha para melhorar sua defesa, permitindo que os persas, neste caso seus Imortais, percorressem a trilha para atacar Leônidas.

Aqui temos a decisão de Leônidas, que pode ter sido motivada pelo oráculo (que previa a morte de um descendente de Hércules), pelo desejo heroico – kleos, ou pela própria lei de Esparta, que fazia parte de sua cultura. De qualquer maneira, Leônidas e os espartanos decidiram permanecer, junto com os téspios e os tebanos — estes últimos mantidos como reféns, afinal Tebas havia se aliado a Xerxes. No final das contas, a permanência de Leônidas permitiu que os demais gregos retornassem e escapassem da morte certa.

Heródoto destaca desta forma:

“Leônidas e os gregos,  marchando  como  para  uma  morte  certa,  avançaram muito mais do que haviam feito antes, até o ponto mais largo do desfiladeiro,  já  sem  a  proteção  da  muralha.  Nos  encontros anteriores  não  haviam  deixado  os  pontos  mais  estreitos, combatendo sempre ali; mas neste dia, a luta travou-se num trecho mais amplo, ali perecendo grande número de bárbaros. Os oficiais destes últimos, colocando-se atrás das fileiras com o chicote  na  mão,  impeliam-nos  para  a  frente  à  força  de chicotadas. Muitos caíram no mar, onde encontraram a morte, enquanto que inúmeros outros pereceram sob os pés de seus próprios  companheiros.  Os  gregos  lançavam-se  contra  o inimigo com inteiro desprezo pela vida, mas vendendo-a a alto preço.  A  maioria  deles  já  tinha  as  suas  lanças  partidas, servindo-se apenas das espadas contra os persas (Heródoto, História, VII, 223, 1950, p. 604).”

E Leônidas caiu nesta ofensiva, tendo seu corpo resgatado heroicamente por seus súditos. Após quatro tentativas repelidas, os Imortais avançaram pela passagem das montanhas, cercando os gregos que, com exceção dos tebanos, permaneceram até o último homem. E assim, depois de seis dias, as Termópilas haviam caído, e o impacto desse resultado é debatido até hoje. Ainda hoje encontramos escritores literários que preferem manter o relato de Heródoto, como Everitt (2019, p. 174):

Xerxes percorreu o campo de batalha e abriu caminho entre os cadáveres, entre eles, o de Leônidas. Ressentido por todos os problemas que o rei espartano lhe causara, mandou cortar a sua cabeça e empalá-la em uma estaca. Temendo que vissem o alto preço que pagara por sua vitória, ordenou que a maioria dos mortos persas fosse enterrada em valas rasas ou cobertos com terra e folhas, deixando apenas mil visíveis.”

Assim como também há historiadores que ao analisar o impacto das guerras greco-pérsicas para os persas, preferem manter um olhar mais cético sobre o resultado do conflito, como Llewellin-Jones (2023, pág. 285);

” Em menos de sete dias, Xerxes rompeu a última barreira que havia entre suas tropas e Atenas. No confronto, matou o rei espartano, um Rei-Mentiroso que ousou opor-se ao objetivo de Xerxes de incorporar a Grécia a seu reino dado por deus. Aúra-Masda estava com Xerxes. Aúra-Masda concedeu a Xerxes uma grande vitória.”

Os mortos em batalha foram enterrados juntos, e onde Leônidas tombou, dois monumentos foram construídos, um especialmente para os espartanos, cuja inscrição era;

“Caminhante, vai dizer aos Lacedemônios que aqui repousamos por havermos obedecido às suas leis.”

 (Heródoto, História, VII, 228, 1950, p. 606)

 

Referências Bibliográficas

CARTLEDGE, Paul (org.). História ilustrada da Grécia. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

EVERITT, Antony. Alexandre, o Grande: a biografia definitiva. São Paulo: Crítica, 2019.

HERÓDOTO. História. Tradução de J. Brito Broca a partir da versão francesa de Pierre Henri Larcher. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1950.

LLEWELLYN-JONES, Lloyd. Persas: o mundo de Dario a Xerxes. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Crítica, 2023.