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A Independência dos EUA

A Indústria Cultural e o Filme – O Patriota

O que é essa Indústria Cultural?

A Indústria Cultural e o Filme – O Patriota
João Henrique Couto Scotto

Vou começar explicando que, no capitalismo, a cultura passou a ser transformada em mercadoria. E, assim como tudo no sistema capitalista, sempre há uma disputa de mercado que nos leva, invariavelmente, ao monopólio.

Essa cultura transformada em mercadoria — como o cinema, a televisão, a música — nem precisa mais ser chamada de arte, pois passa a ser tratada como produto voltado para aquilo que podemos chamar de cultura de massas. Ou seja, esses produtos passam a integrar uma Indústria Cultural, tornando-se parte de um negócio cuja ideologia é legitimar o próprio produto que oferece.

Theodor Adorno

“Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos”(Adorno e Horkheimer, 2006, p.100).

Mas e daí, qual o problema? Pois é, acontece que é inevitável, para essa Indústria Cultural, a busca por um público amplo. E, para isso, torna-se necessário “disseminar bens padronizados para a satisfação de necessidades iguais” (Adorno e Horkheimer, 2006, p. 100). Assim, cria-se todo um corpo técnico cujo objetivo é identificar padrões nas necessidades dos consumidores — que, como percebemos atualmente, aceitam sem resistência.

Como assim? Essa Indústria cria a demanda e, dessa forma, temos um público cada vez mais coeso. Vou exemplificar: atualmente, uma das demandas criadas pela Indústria Cultural é a de séries e filmes inspirados em jogos digitais (The Last of Us, Borderlands, Mario, Minecraft). Isso mesmo: a Indústria Cultural acertou na mosca — conseguiu criar um público gigantesco, pronto para consumir esses produtos.

Max Horkheimer

“O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista o seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica técnica hoje é a racionalidade da própria dominação(Adorno e Horkheimer, 2006, p.100).”

E, nesta prática da Indústria Cultural, temos o filme O Patriota, lançado no ano 2000. Uma história épica que atraiu milhões de trabalhadores a visitarem as videolocadoras brasileiras — muitos, cansados do trabalho e da exigente rotina capitalista (trânsito, filas de banco, mercado). Era necessário descansar com a família assistindo a um bom filme. Logo, a necessidade era o entretenimento. E, num primeiro olhar, isso parece ótimo. Mas pasmem: a reunião familiar já existia antes dessa “sessão cinema” em família. A diferença é que, assistindo ao filme juntos, todos ficavam quietos, aguardando as “emoções” que o filme proporcionaria. Quanto mais certeira fosse essa fórmula do entretenimento, mais rentável seria o filme.

Mas eu não tirei isso da minha cabeça. Observe o que Adorno e Horkheimer (2006, p. 113) afirmam em sua obra A Dialética do Esclarecimento:

” A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo.”

Se você assistiu ao filme O Patriota, provavelmente percebeu que se trata de um produto criado a partir de uma operação padronizada — ou seja, a criação de um evento roteirizado, cujo conteúdo, apresentado de forma sequencial, tem por objetivo não exigir muito (ou nenhum) esforço para que o espectador o compreenda. Para aqueles que assistiram durante a aula, a experiência ocorreu em uma condição de prazer, pois o filme serviu como uma pausa no aborrecimento em relação à escola — assim como acontece quando chegamos do trabalho e ficamos com a família diante da televisão.

E você, aluno ou trabalhador, nem precisou desenvolver um pensamento próprio durante esse tempo, pois o próprio roteiro do filme já deixou tudo bem esclarecido. Além disso, o produto ofereceu diferentes momentos de emoção: drama, romance, heroísmo, alegria, êxtase… E um elemento que não esteve presente (e tampouco era essa a intenção) foi a decepção. Afinal, produtos da Indústria Cultural devem vender — é a diversão que nos controla!

Pensando sob esse ponto de vista, os produtos da Indústria Cultural nos alienam — mas seria isso algo realmente sério? Quais as implicações que esses produtos trazem para nós, enquanto seres humanos? Essas são perguntas pertinentes. Para muitos, a Indústria Cultural não tem relação alguma com nossa forma de pensar e de viver. Porém, lhes digo: esses produtos voltados à cultura de massas nos amansam e nos retiram elementos importantes da nossa humanidade, como a reflexão e o pensamento crítico.

Muitas vezes, consumimos produtos dessa cultura de massas e, ao contrário de uma arte que nos permite experimentar sua essência — como, por exemplo, observar um quadro cujo significado nos parece distante e que nos impele a pensar sobre muitas coisas (inclusive sobre sua esquisitice) —, os produtos da Indústria Cultural frequentemente têm como único objetivo nos fazer sentir cultos a partir deles, como a ideia de aprender apenas assistindo filmes e documentários.

Esse consumo impositivo — como no caso de muitos que amam a história viking, tão distante e sem nexo para nós, mas amplamente imposto pela indústria por meio de séries, filmes e jogos — acaba criando um pensamento coletivo sobre determinados temas, sem margem para a negação ou crítica. Ou seja, a Indústria Cultural constrói uma unidade de pensamento.

"Não se deve repreender a cultura de massas por ser contraditória, nem por seu carácter objetivo ou não objetivo, mas sim pela tendência conciliatória que a impede de desdobrar a contradição até que se revele a sua verdade (Adorno, 2020, p.183)"

O que eu quero dizer é que a Indústria Cultural promove obstáculos à compreensão do mundo que permita que a nossa experiência seja uma forma de entender a realidade. Nossas experiências de vida estão amarradas à dominação burguesa — ou seja, a uma elite econômica que controla tanto o nosso trabalho quanto o nosso lazer — e que, por isso, limita qualquer capacidade de rompermos com esse ciclo de dominação física e mental.

Uma forma de compreender a nossa realidade é observarmos as contradições presentes no cotidiano e, de forma crítica, pensarmos em transformar essas condições. Porém, dificilmente conseguimos elaborar um pensamento verdadeiramente contraditório, pois tudo à nossa volta exige apenas o aperfeiçoamento e a resolução dos problemas dentro da própria estrutura vigente. O problema é que a cultura de massas impede qualquer desenvolvimento dessa forma de pensar e agir.

Herbert Marcuse

A socialização massiva começa em casa e impede o desenvolvimento da percepção e da consciência. A conquista da autonomia exige condições nas quais as dimensões reprimidas da experiência possam voltar à vida de novo; sua libertação exige a repressão das necessidades e satisfações heterônomas que organizam a vida nessa sociedade (Marcuse, 2021, p.230)

Existe saída para essa situação? Creio que sim. E eu não vou sonhar com um apocalipse que retire do nosso meio esses objetos de dominação e que, na ausência de propaganda, de mídia doutrinadora e de entretenimento, pudéssemos transformar esse tempo livre em um espaço reflexivo — um espaço que permitisse às pessoas, em geral, se admirarem, se criticarem ou, melhor, voltarem sua reflexão aos falsos líderes, tendo que reconstruir seu pensamento crítico do zero, sem a influência da classe dominante.

Mas isso é um sonho muito distante, pois é mais fácil aceitar um aquecimento global desenfreado, com fenômenos climatológicos destruidores, ou uma guerra devastadora (nuclear ou não), que ainda promove genocídios horrendos, do que perdermos nosso acesso aos confortáveis produtos da Indústria Cultural — como nossos smartphones.

Talvez — e essa é a minha grande proposta teórica — seja necessário transformar nossos olhares em relação aos produtos à nossa volta, construindo um pensamento crítico e reflexivo a partir dos nossos consumos, como vamos tratar a seguir, a partir do filme O Patriota.

A Independência dos EUA a partir do filme - O Patriota.

Pessoas, eu não vou descrever a história nem os personagens, tampouco cuidar dos spoilers a partir de agora. Faremos a análise da história dos EUA e do filme O Patriota a partir da experiência já vivida com o filme (quero dizer: assista antes). Também tenho consciência de que se trata de um produto voltado para a cultura de massas. Portanto, jamais vou esperar que um filme feito para milhões de pessoas seja instrutivo ou contenha elementos positivos para a emancipação humana. Na verdade — e é óbvio — o propósito de um produto da Indústria Cultural nem pode ser esse, pois deixaria de funcionar como mercadoria, e ninguém, em sã consciência, gostaria de ter prejuízo dentro do sistema capitalista.

O filme começa em 1776, mostrando a vida de uma família na Carolina do Sul, onde o patriarca é um personagem fictício, Benjamin Martin, um ex-capitão do exército colonial inglês que participou do que o filme chama de Guerra Franco-Indígena, ou melhor, da guerra da França contra os índios. Aqui vale ressaltar que o nome correto do conflito, para nós, é Guerra dos Sete Anos — um conflito de escala global, que ocorreu inclusive no Brasil, a partir das chamadas Guerras Jesuíticas. Na historiografia dos EUA, o nome é localmente referido como French and Indian War.

E aí temos o primeiro “evento” histórico: a convocação para participar do congresso local da Carolina do Sul, onde Benjamin se destaca ao negar sua participação no conflito, alegando a necessidade de proteger sua família — composta por sete filhos, sem mãe. Em vez disso, propõe continuar o diálogo com o rei George III da Inglaterra, assim como foi feito no Primeiro Congresso da Filadélfia, em 1774.

O filme está situado em 1776. Portanto, os conflitos com os ingleses já haviam começado no ano anterior, após os eventos de Bunker Hill — que outro personagem fictício, o coronel Harry Burwell, acaba citando. Naquele momento, o filme mostra uma grande comoção popular em favor do conflito, mas é importante lembrar que, na Carolina do Sul (uma colônia sulista), havia uma grande divisão entre ser leal aos ingleses ou buscar a independência.

Ato 1 – A motivação de Benjamin Martin

A cultura de massas exige um herói. Dessa maneira, nada mais justo — dentro dessa lógica — do que apresentar Benjamin Martin como um pai herói, defensor da família e dos valores estadunidenses. Por isso, a motivação de Benjamin para entrar no conflito é a morte de seu filho Thomas Martin, que corre para proteger o irmão mais velho, William, capturado por um capitão inglês (vilão fictício).

Neste contexto, o filme nos apresenta muitas falhas históricas que, claro, se somam à necessidade de criar uma narrativa atraente

Em uma das cenas do filme, dá-se a entender que os negros da fazenda de Benjamin eram trabalhadores assalariados, livres. Porém, é importante dizer que esse evento acaba negando um elemento presente nesta guerra de independência: a manutenção da escravidão. Segundo o historiador Howard Zinn, somente na Carolina do Sul já haviam ocorrido oito revoltas de escravizados, além de outras quarenta espalhadas pelas demais colônias. Havia, de fato, um problema chamado escravidão — e o filme omite isso.

Além de omitir a escravidão, dando contornos de um heroísmo moral aos estadunidenses, o filme constrói uma vilania exacerbada. Temos um personagem inglês fictício: o coronel William Tavington. Ele é uma figura extremamente cruel, que lidera um corpo especial do exército inglês chamado Dragões Verdes. Comete assassinatos sumários e adota uma postura abertamente racial, considerando os ingleses como superiores. Trata-se de uma estratégia clara de tornar uma parte dos ingleses bastante semelhante a personagens nazistas dos clássicos da Segunda Guerra Mundial. Ou seja, Tavington parece um oficial nazista no comando de seu pelotão da SS.

Claro que, na roteirização, personagens são inspirados em “figuras reais”. Neste caso, a inspiração foi o tenente-coronel inglês Banastre Tarleton, líder de uma cavalaria conhecida como Dragões Ligeiros (minha tradução), que, sob o comando de Lord Cornwallis, lutou nas colônias do sul. Sua fama de crueldade veio após ser acusado por americanos de exterminar soldados feridos e incapacitados durante o episódio de Waxhaws, em 1780. Essa violência foi propagandeada como inédita no conflito, tanto que a ação passou a ser chamada de Massacre de Buford, e Tarleton recebeu apelidos como “Bloody Tarleton” (Tarleton Sangrento) e “Tarleton’s Quarter” — uma referência à execução de soldados rendidos. De fato, ele está envolvido em episódios de violência, mas também em atos de civilidade, como o enterro dos mortos e o cuidado dos feridos após sua primeira derrota, na Batalha da Fazenda Blackstock. Sua prisão em 1781 e o retorno à Inglaterra com a derrota no ano seguinte não impediram Tarleton de ser promovido, de lutar contra Napoleão Bonaparte e de encerrar sua vida com uma carreira política, sendo deputado inglês na década de 1830.

O que o filme mostra é que, com a entrada de Benjamin Martin no conflito — baseado na defesa da pátria, da família e dos valores cristãos (sim, é bem aquele tipinho: Deus, Pátria, Família) —, teremos uma “virada” militar pró-EUA, garantindo a vitória dos colonos.

Ato 2 – As Batalhas nos sul

Essa parte do filme apresenta aqueles clichês da cultura de massas, como a paródia sobre o francês que ajuda Martin a treinar aqueles pobres colonos que dariam a vida pela nação. E aqui, o povo em geral é esculachado: ou eram ingênuos no uso das armas e das táticas de guerra, ou, quando tinham alguma habilidade e se destacavam, apresentavam comportamentos morais, no mínimo, questionáveis. O ruim de ser povão é que parece que só serve para ser figurante e encher cena. Parece isso — e é!

O poder desse filme é tão grande que, quando Leandro Karnal (2021, p. 89) escolhe falar resumidamente sobre as guerras da independência, ele o faz inspirado pelo filme:

Leandro Karnal

" Um dos fatores que mais uniu os colonos em torno da causa da Independência foi a violência inglesa. Banastre Talerton, por exemplo, foi apelidado de açougueiro pelos norte-americanos, pela ferocidade com que matava mulheres e crianças e incendiava aldeias inteiras. Um dos objetivos de Tarleton era capturar um guerrilheiro pró-Independência Francis Murion, apelidado de Raposa do Pântano."

Mapa das colônias inglesas na América.

O que acontece, de fato, é que a Inglaterra decide mudar sua “zona de combate” do Norte para o Sul, onde havia mais legalistas a seu favor e onde a economia lhe seria mais favorável. Além disso, havia a possibilidade de desestabilizar a região com a libertação dos escravizados que lutassem a seu favor — as colônias do Sul eram fortemente escravistas. Por isso, entre 1779 e 1781, as principais batalhas vão se desenvolver nas colônias da Geórgia, Carolina do Sul, Carolina do Norte e Virgínia. No filme, não há uma designação específica das batalhas, mas duas importantes ocorreram em um período de tempo semelhante ao retratado: a Batalha de Camden e a Batalha de Cowpens.

Na Batalha de Camden, temos uma vitória esmagadora de Lord Cornwallis (general inglês, que também aparece no filme) sobre o herói de Saratoga, Horatio Gates. Essa derrota foi tão severa que o exército organizado da Carolina do Sul foi desmantelado, sendo substituído por uma milícia irregular. Claro, o filme não mostra Horatio nesse momento, pois isso evidenciaria apenas seu fracasso — e ele é um herói americano. Já Lord Cornwallis é representado como um senhor que se preocupa mais com a honra do que com a vitória, um baita clichê sobre oficiais ingleses que o filme reforça.

Porém, em janeiro de 1781, Washington (que é citado no filme, mas não aparece) reestrutura o comando na Carolina do Sul, e, com isso, Daniel Morgan inicia uma série de escaramuças para cortar os suprimentos dos ingleses — essas cenas são representadas no filme. De fato, Daniel Morgan é um dos personagens reais que inspiraram Benjamin Martin, assim como Francis Marion, conhecido como a “Raposa do Pântano”. Essas ações impelem Cornwallis a reagir, e ele envia o jovem general Banastre Tarleton para impedir as ações de Morgan.

Na batalha final apresentada no filme, Cornwallis é atrapalhado pelo coronel Tavington, que interfere com sua cavalaria e é pego pela estratégia de Benjamin Martin atrás da colina — o que tem inspiração histórica na Batalha de Cowpens. Na batalha real, Daniel Morgan lidera um contingente de aproximadamente mil homens, número semelhante ao de Tarleton. Morgan divide suas forças em três linhas: posiciona os milicianos na segunda linha e reserva seus melhores soldados atrás de uma colina. Ao atacar os oficiais ingleses, desfavorece qualquer possibilidade de resposta rápida de Tarleton, surpreendendo-o com seus melhores homens descendo das colinas. A vitória de Daniel Morgan leva Cornwallis a desistir da campanha na Carolina do Sul e seguir para a Virgínia, onde seria surpreendido por Washington no cerco de Yorktown — episódio em que os ingleses sofreriam uma derrota militar decisiva na guerra.

Só para você entender melhor: Lord Cornwallis nunca esteve presente na Batalha de Cowpens, e Tarleton não morreu — ele escapou de ser morto por William Washington (primo de George Washington), que atirou em seu cavalo, permitindo sua fuga.

 

Mulheres sendo vendidas em Jamestown

Ato 3 – Os excluídos 

Até agora, eu abordei os “protagonistas” de O Patriota e relacionei com os principais eventos históricos presentes no filme. Porém, ainda não falei sobre Charlotte e suas posses, nem sobre os negros libertos, vivendo em harmonia com seus “patrões” nas fazendas da Carolina do Sul. O filme ocultou algo que, até hoje, me impede de afirmar que o processo de independência dos EUA foi, de fato, uma revolução. Qual foi o papel das mulheres e da escravidão nesse processo de independência?

Primeiro, precisamos entender que, desde a chegada dos primeiros colonos ingleses à América, no século XVII, já se percebia a presença dos primeiros escravizados a partir de 1619 — mesmo ano em que chegaram cerca de 90 mulheres. Podemos resumir as condições dessas mulheres a partir da frase de Zinn (p. 103):  “Pessoas agradáveis, jovens e incorruptas… vendidas como esposas aos colonos com seu próprio consentimento, sendo seu preço o custo de seu próprio transporte.”

Howard Zinn

"Primeiro deve ser estabelecido, como um conceito básico geral, que há desigualdade entre os sexos, e para a melhor economia do mundo, aos homens, que seriam os criadores da Lei, seria conferida uma maior porção de racionalidade."

Eu sei, dá um nojo, né… Mas o filme reproduz esse pensamento através de duas personagens fictícias, a Charlotte e a Anne. Elas participam dos conselhos e não falam nada (a Anne até fala na igreja), não divergem de seus amados, sendo apenas motivadoras. No caso da Charlotte, isso é ainda mais escancarado, pois ela encarna a necessidade de ser uma mãe criadora dos filhos e dona do lar no lugar da sua falecida irmã, naturalizando o processo de submissão feminina de seu tempo. Claro que o filme evitou dar filhos a Charlotte, pois seria constrangedor para um “pai da pátria” ser um padrasto, o que com a Charlotte seria algo comum, afinal, ela quer ficar com seu cunhado. A sua participação no conflito se limita a fugir e cuidar dos filhos de Benjamin Martin. Mas há uma contradição maior: como a Charlotte tem propriedade privada, se a luta feminista do século XVIII era justamente pela possibilidade de registrar sua posse de terra ou propriedade?

Neste caso, o filme opta por uma posição tradicionalista quanto à participação das mulheres na guerra, valorizando um papel submisso de cuidado da família e excluindo as ações de resistência feitas por diversas outras durante o período. Ah, mais uma comparação: a Anne do filme me lembra a Anne Hutchinson, uma colona inglesa na América, mãe de três filhos e herbalista, que questionava duramente sua igreja quanto ao seu direito de interpretar a Bíblia à sua maneira. O que aconteceu com ela foi bem diferente da Anne do filme, onde todos param para ouvi-la durante o sermão. Esta Anne (a colona) foi presa, interrogada e obrigada a escrever uma carta pedindo perdão pela sua heresia, mesmo que sua interpretação da Bíblia fosse muito bem elaborada.

Agora voltemos à Charlotte, aquela personagem fictícia que tinha propriedade privada numa época em que a mulher era proibida disso. Viram só? O filme, se visto como fonte histórica, oculta as violências dentro de sua narrativa — então, tome cuidado. Ela é, a princípio, a crush do protagonista, líder da guerrilha da Carolina do Sul. Para falar a verdade, as esposas dos líderes revolucionários tinham uma participação muito mais ativa do que a sem-graça da Charlotte, que só servia para fugir e cuidar dos sobrinhos. Algumas mulheres escreviam artigos e debatiam com lideranças masculinas, sendo atentamente escutadas (em alguns casos). Das esposas dos líderes, podemos destacar Abigail Adams, esposa do futuro vice-presidente John Adams. Abigail sugeriu ao marido, antes da Declaração de Independência, que era necessário cuidar das mulheres; por isso, deveriam limitar o poder dos homens, pois eles poderiam se tornar tiranos caso tivessem poder ilimitado sobre suas esposas. Daí, Thomas Jefferson até suprimiu sua frase “todos os homens são iguais”, afirmando que as mulheres teriam condições de participar ativamente da política americana. Uma pena é que esse debate não avançou no processo de independência, pois todas as mulheres foram excluídas do direito à participação política nos EUA. Essa luta ficou para o século XIX.

Vamos voltar à escravidão. Esse é um tema que o filme “adomestica”, ou seja, romantiza a participação das negras e negros escravizados naquele tempo, seja afirmando que eles são livres — como na cena da fazenda de Benjamin Martin —, ou quando abrigam Charlotte e os filhos de Benjamin, construindo até um espaço “chique” para ela, com uma expressão de gratidão pelo bom cuidado que os brancos tinham com os negros. Isso tudo numa região que seria marcada pelas ações da Ku Klux Klan no século seguinte — que situação! Mas vai ficar pior: temos um personagem negro que luta ao lado dos rebeldes. O nome dele no filme é Occam, e ele sonha em ficar livre após um ano de serviço. É criada toda uma narrativa de aproximação entre brancos e negros nesse processo de luta de Occam, dando a entender que as guerras de independência serviram como instrumento de aproximação entre os brancos e os negros nos EUA.

Mas aqui é importante olharmos a participação dos negros no processo de independência, que no filme dá indício de integração dos escravizados à luta de forma voluntária — o pior é apresentar a população negra como liberta. O filme ignora o fato de que a população negra americana estava, em sua grande maioria, em condição de escravidão durante as guerras de independência. Pelo contrário, mostra a população negra organizada em harmonia em vilarejos improvisados, como se eles não tivessem sido vítimas do conflito. Se voltarmos nossos olhares para a Carolina do Sul, sabemos que 1/4 da população escrava ficou livre depois do conflito, porém muitos em decorrência de terem lutado pelos ingleses ou de terem fugido e se organizado em quilombos, devido às revoltas maroon que ocorreram nas plantations da região. Os estadunidenses não procuraram, a partir das guerras de independência, o fim da escravidão; pelo contrário, quanto mais o fronte de batalha se dirigia para as colônias do sul, mais a população negra era desmobilizada para o conflito, sendo que até proibições quanto à participação de negros no exército das colônias foram reforçadas. E depois da guerra, o que aconteceu? A resposta é triste: a escravidão sofreu um salto demográfico, quase dobrando na década seguinte. Diferente do filme, o final não é muito bacana […]

Referências

ADORNO, Theodor W. Indústria cultural e sociedade. 13. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2020.

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

AMERICAN BATTLEFIELD TRUST. Banastre Tarleton. Disponível em: https://www.battlefields.org/learn/biographies/banastre-tarleton. Acesso em: 28 abr. 2025.

AMERICAN BATTLEFIELD TRUST. Battle of Camden. Disponível em: https://www.battlefields.org/learn/revolutionary-war/battles/camden. Acesso em: 28 abr. 2025.

BATTLEFIELDS.DE. Battle of Cowpens. Disponível em: https://www.battlefields.de/learn/articles/cowpens. Acesso em: 28 abr. 2025.

EMMERICH, Roland (Direção). O Patriota (The Patriot). [Filme]. EUA: Columbia Pictures, 2000. 164 min.

KARNAL, Leandro (Org.). História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2021.

MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional: ensaio sobre a ideologia da sociedade industrial avançada. Tradução de Flávio R. Kothe. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2021.

ZINN, Howard. La otra historia de los Estados Unidos: desde 1492 hasta hoy. 3. ed. Hondarribia: Hiru, 2005. Tradução do original A People’s History of the United States: 1492 to present. ISBN: 84-89753-91-1.

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