Vamos começar a falar de Golpe a partir do ponto de vista de quem não considera o movimento de afastamento de João Goulart da presiência um golpe. Então, serei direto e resumirei as falas de Nícolas Ferreira e de Eduardo Bolsonaro, listando algumas de suas principais afirmações.
E agora? Como podemos combater essa narrativa negacionista, elaborada para trazer ganho político? Sinceramente, será um caminho árduo desconstruir essa “canalhice” histórica, mas vamos por partes…
Legal né, cuspiram um montão de negacionismos, e agora, qualquer tentativa de desmentí-los vai me fazer parecer um doutrinador esquerdista, e que, portanto, possue um viés que me impede de enxergar o passado, logo, a direita está correta. Calma lá, se você está lendo isso, não me entenda errado, essa narrativa negacionista será destruída até o final da sua leitura. Primeiro é importante dizer que a História, como uma ciência do presente, se faz como ciência porque possui teoria e método, e isso de forma alguma traz a História a “Imparcialidade” pregada por quem nem sabe o que ela (a História) é. Quando falo de Teoria, quero dizer que ela é uma maneira de entender o mundo ou um campo de fenômenos que estão sendo examinados. Da mesma maneira, quando falo de método, falo das ações concretas para responder a tal problema que a Teoria me proporcionou enxergar. Então, não há uma narrativa da direita e outra da esquerda, existem inúmeros estudos sobre os eventos de 1964, e todos eles nos levam a um mesmo lugar – o de Golpe em 31 de março de 1964.
Ah, eu sei, temos obras que negam o golpe, e que a “academia” nem utiliza, como a Verdade Sufocada do torturador Brilhante Ustra. Lá, ele fala do fato desta maneira:
Tais manifestações e pronunciamentos falam por si.
Não há qualquer sustentação na história ou nos documentos da esquerda que comprove ter havido um “golpe da direita” ou um “golpe militar”. Tais conceitos fazem parte da mesma orquestração em que se inclui a falácia de que a esquerda revolucionária pós 1964 lutava contra a “ditadura”. Não tenho ideia de quem urdiu essas mentiras, mas com muita convicção afirmo que tudo faz parte de um processo para desmoralizar o movimento de 31 de março de 1964 e de mitificar os “heróis” das esquerdas.
Houve, realmente, uma Contra-Revolução: um duro golpe contra as pretensões de comunização do Brasil. (Ustra, 114, 2007)
Dentro do livro de Brilhante Ustra, é impossível percebermos qualquer linha teórica, afinal de contas, ele utiliza a História como justificativa de uma ação militar, inserindo fontes que apenas fomentam a sua narrativa, para quem já assistiu o canal Brasão de Armas, é igualzinho o método do pseudo-historiador Tiago Braga. De fato, Brilhante Ustra no seu livro sobre A Verdade Sufocada, apenas sufoca qualquer possibilidade verdadeira sobre o golpe atacando narrativas contrárias a sua, chamando-as de comunista. Mas esse é fácil expor, confome vimos acima, ele valoriza o movimento como um acontecimento militar necessário para combater o comunismo.
Você percebe no trecho de Brilhante Ustra um aporte teórico ou uma conspiracionismo? Ele se baseia na sua convicção e numa ideia de conspiração, e isso, jamais pode ser tratado como Teoria e Método. Por exemplo, para falarmos sobre os conceitos debatidos na sua fala (Golpe ou Revolução) nós podemos utilizar os historiador Reinhart Koselleck e sua obra – Histórias de Conceitos. Cujo resumo básico da sua Teoria pode ser expressada da seguinte maneira:
A história dos conceitos interroga primariamente como, quando, onde, por quem e para quem são conceitualizados intenções e estados de coisas. A história dos conceitos sempre investiga os desafios singulares para os quais, no uso concreto das palavras, respostas conceituais vão sendo linguisticamente condensadas.Nesse processo, os conceitos vão sendo linguisticamente condensadas. Nesse processo, os conceitos não realizam apenas um trabalho interpretativo sincronicamente singular, pois ao mesmo tempo também estão escalonados de forma diacrônica. Na pragmática, mesmo que sujeitos à retórica, os conceitos são intensificados em seu uso singular de modo a gerar consentimento. Na semântica, por sua, vez, encontram-se guardadas experiências, muitas vezes antiquíssimas, que tanto enriquecem quanto delimitam a força expressiva de um conceito (Koselleck, 2020, pág. 108)”
Basicamente, que quero utilizar Koselleck para dizer que os conceitos (palavras) tem uma origem histórica, mas com o tempo, os significados vão se transformando, até chegarmos a um consenso sobre o conceito. Analisar a transformação das palavras, neste caso, vai nos ajudar a entendermos como podemos utilizá-las. Por exemplo, quando falamos de Revolução, posso, de forma bem resumida, falar que a palavra se origina do latim Revolutio, que significava reviravolta profunda. Com o Copérnico, a palavra passa a ser utilizada de outra forma, na Astronomia, Copérnico vai utilizar o termo Revolução para significar a rotação da Terra em torno do Sol e também em torno do seu próprio eixo. O uso político de Revolução começa durante a Revolução Francesa, e a partir daí, constrói-se no conceito de Revolução uma ideia de grande transformação da estrutura de sociedade, promovida por um agente de fora dessa estrutura, geralmente com forte adesão popular. Outro conceito é o de Golpe de Estado, e esta palavra se origina do francês coup d’État, e basicamente, nos traz uma ideia de troca de governo a partir da sua própria estrutura de governo, ou seja, há uma mudança de poder originada da própria estrutura de poder, sem participação popular e sem conter uma forte mudança de estrutura na sociedade.
Pronto, mostrei para você dois conceitos distintos, ao analisar os eventos a partir de 31 de março, vou deixar você decidir se há uma grande conspiração que forçou o exército há uma Contrarrevolução ou Revolução, ou, de fato, há uma mudança de poder realizada de forma inconstitucional a partir da própria estrutura de poder, neste caso, através do protagonismo das forças armadas.
O que aconteceu em 31 de março de 1964? Nada!
E assim o então presidente Bolsonaro reforçava a narrativa de que a tomada de poder pelos militares não havia acontecido, que a mudança política foi em decorrência de o processo democrático não ter aceitado as medidas autoritárias e comunistas do então presidente João Goulart. Para muitos, esse processo é chamado de Contrarrevolução, Contragolpe e, por alguns mais abusados, de Revolução de 1964.
Mas, de fato, vivíamos em 1964 uma polarização política sem precedentes. Assim como no mundo imperava uma disputa entre Capitalismo e Socialismo (a Guerra Fria), no Brasil, João Goulart tentava introduzir o que ele chamava de Reformas de Base, um amplo programa de mudanças estruturais na economia e sociedade brasileira. Resumidamente, ele buscava uma ampla reforma agrária, com combate aos latifúndios, uma reforma educacional, utilizando como base pedagógica as ideias de Paulo Freire, e ações econômicas que significavam muitas alterações, como o controle das remessas de lucro e a promoção do aumento da arrecadação.
Outro ponto que descontentava a elite militar era levar aos praças das Forças Armadas (soldados, cabos, sargentos) a possibilidade de participar das eleições, ou seja, o direito de voto. Claro, devemos aprofundar esses elementos para entendermos ainda mais esse processo, mas isso deve ser feito num outro momento.
Eu vou diretamente para março de 1964, até porque, neste texto, eu não busco expressar os motivos do golpe, e sim demonstrar que houve, descaradamente, um golpe de Estado!
Em 1964, João Goulart enfrentava uma crise econômica (bem normal para nós, brasileiros, infelizmente). Só para você ter uma ideia: a inflação anual era de 79,9% e o crescimento do PIB, de apenas 1,5%. Além disso, Jango não tinha apoio do Congresso, que, inclusive, só lhe devolveu o poder presidencial através de plebiscito.
Por isso, nesse fatídico mês de março, Jango iniciava uma forte ação política em disputa com o Congresso Nacional. Então, em 13 de março de 1964, um grande comício na Central do Brasil é organizado, levando mais de 150 mil trabalhadores. Ali, lideranças das esquerdas discursariam, com desfecho para João Goulart, que, ao lado da jovem primeira-dama, fecharia a noite com um discurso emotivo e combativo em favor das Reformas de Base.
Na segunda, João Goulart enviaria a mensagem anual presidencial ao Congresso, pedindo ampliação dos seus poderes e implementação das Reformas de Base — o tom de Jango era de quem queria tomar o poder.
E aqui a gente tem que esclarecer alguns elementos. Primeiro, na obra monumental de Elio Gaspari, A Ditadura Envergonhada, ele demonstra relatos de que Jango poderia estar buscando um golpe também, através de conversas com o embaixador Lincoln Gordon, nas quais este afirma que, em conversas particulares, o então presidente falara que ou se tornaria um presidente simbólico, ou renunciaria, ou então mandaria ver.
Um outro relato é do então governador de Pernambuco, Miguel Arraes, que teria dito que Jango estava empolgado com uma conversa sobre tomada do poder. Daí vem a expressão de Elio Gaspari — “Havia dois golpes em marcha”.
Essa abordagem vai fomentar o historiador Marco Antonio Villa em sua obra Ditadura à Brasileira: a democracia golpeada à esquerda e à direita, onde, infelizmente, ele coloca em pé de igualdade narrativas políticas (como as existentes nas esquerdas) com ações políticas (como as perpetradas pela direita).
E você há de concordar que pensar, falar e agir são ações completamente diferentes.
Voltando aqui, após a mensagem de Jango ao Congresso, nós temos uma forte reação do campo conservador brasileiro, que só foi possível graças à estrutura de informações criada pelos militares e pela elite econômica brasileira. Como assim?
Havia sido criado, em 1962, o IPÊS (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), uma organização formada pela elite econômica, por militares de alta patente e amplamente financiada pelos EUA. Este instituto privado visava criar um projeto educacional em sua fachada, porém, era também um grande instrumento de disseminação de propaganda anticomunista, de financiamento de parlamentares e grupos opositores de Jango, e até de infiltração em movimentos populares.
O IPÊS agia em conjunto com outra organização anticomunista, chamada IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática). Juntos, estes institutos alertavam a oposição a Jango (militares e a UDN) de que haveria um golpe promovido por ele no país.
Essas forças políticas organizaram, através da União Cívica Feminina, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, onde, em 19 de março, na capital paulista, por volta de 500 mil pessoas fizeram uma passeata carregando bandeiras, faixas e rosários, cujo objetivo era “salvar” o Brasil do comunismo, de Jango e de Brizola.
A passeata era uma resposta ao comício realizado na Central do Brasil, assim como um pedido de intervenção militar, conforme a direita se articulava.
Mas João Goulart e Brizola eram uma ameaça tão grande à democracia? Não podemos negar que havia, dentro das esquerdas brasileiras, a intenção de fortalecimento político — óbvio para qualquer força política. Havia uma articulação política para que, nas eleições de 1965, João Goulart pudesse ser candidato, ou que fosse permitido a Brizola — seu cunhado — essa condição. Na época, havia até mesmo o slogan: “Cunhado não é parente, Brizola presidente!”
Todas essas possibilidades eram aventadas dentro do jogo democrático, não havia nenhuma ação direta em direção a um golpe de Estado. Dentro das Forças Armadas, Jango articulou para que as lideranças militares fossem favoráveis ao seu governo, no que fora chamado de “Dispositivo” por alguns historiadores.
Por exemplo, o Ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, era um apoiador de Jango e colocara no I Exército (do Rio de Janeiro) o seu homem de confiança, o general Armando de Moraes Âncora. No II Exército de São Paulo, nós tínhamos o general Amaury Kruel — compadre de Jango. No III Exército, do Rio Grande do Sul, o general era Benjamin Rodrigues Galhardo, outro general fiel ao Ministro da Guerra. O principal articulador deste “Dispositivo Militar” era o general Assis Brasil.
Enquanto isso, na Aeronáutica, nós tínhamos o Clube dos Sargentos, fortemente alinhado a Jango. E na Marinha, tradicionalmente conservadora, havia uma grande desmoralização, projetada não pela ideia de comunismo, mas sim pela forte doutrina militar imposta aos marujos de baixa patente, historicamente explorados — como percebemos na Revolta da Chibata.
Também não podemos esquecer que o PCB estava em ação, onde Luís Carlos Prestes mantinha, em segredo, alguns oficiais do Exército — mas principalmente da FAB — aliados ao comunismo. Mas também não exageremos achando que isso era uma ameaça real — sabemos que não chegavam a 30 membros.
O que quero dizer é que tudo isso não pode ser visto como uma ameaça de golpe, e sim como um instrumento de garantia da Legalidade, até porque esses militares não vão agir para apoiar Jango.
Em 25 março o ministro da Marinha mandava prender quarenta cabos e soldados da marinha que organizavam o segundo aniversário da AMFNB (Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil). Marco Antônio Villa, descreve de maneira preguiçosa este acontecimento:
A reunião tinha sido proibida pelo Ministro da Marinha. Mesmo assim, compareceram 4500 marinheiros. Aprovaram várias propostas, inclusive uma espécie de central que unia as associações das Três Armas de praças, cabos sargentos e marinheiros. A proposta encontrava a oposição dos oficiais, independentes da coloração política. Parte dos fuzileiros navais enviados para dissolver a reunião acabou aderindo aos manifestantes. O clima era de inssurreição (Villa, 2014, pág.47).
Fuzileiros entrincheirados no Palácio do Aço e tropas enviadas para combater os insurretos acabam aderindo ao movimento. É essa a situação que João Goulart encontra em 27 de março, quando chega ao Rio de Janeiro. João Goulart troca o ministro da Marinha, liberta os amotinados, e eles desfilam eufóricos na frente do Ministério da Guerra, que ainda ficava no Rio de Janeiro. Para os oficiais, houve uma grave quebra de disciplina e a desmoralização completa do comando. E, novamente, Brilhante Ustra retrata um olhar sobre a razão desse motim:
“Logo depois, ocorreu a rebelião de centenas de marinheiros, que, depois de abandonarem suas unidades, concentraram-se no Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos da Guanabara.
O ambiente era tenso. Os infiltrados “trabalhavam” os recrutas de suas unidades. Dentro dos quartéis doutrinavam com relativa liberdade, acobertados por reivindicações de classe. Desenvolvia-se a campanha comunista (Ustra, pág. 83, 2007).”
Nós podemos pensar em rebelião, sindicalização e comunismo como deflagradores deste motim, mas lembramos também que os marinheiros eram proibidos de votar e de serem votados, recebiam baixíssimos salários, e os abusos eram constantes nos navios, principalmente quanto à alimentação e às condições de trabalho. E, pasmem, ninguém fala dos regulamentos que a Marinha impunha aos praças, como a proibição de casamento sem autorização e de sair às ruas com trajes civis. Lembro que o uniforme dos praças não era bonitinho como o do Quico do seriado Chaves — eles viviam em maltrapilhos. Havia motivos muito maiores do que a implementação do comunismo nas ações dos marinheiros. E o pior: o presidente não tinha poder para modificar isso — talvez anistiar esses marujos fosse uma forma de recompensá-los na luta por melhores condições.
Essa era uma das gírias de incentivo da esquerda para o presidente João Goulart. E assim, sabendo de toda a pressão sobre ele desde a Revolta dos Marinheiros, Jango sairia, na noite do dia 30 de março, do Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, rumo ao auditório do Automóvel Clube, na Cinelândia. Mas o que estava acontecendo lá? Hum, era a posse da nova diretoria da Associação dos Sargentos, e o salão estava lotado de praças! Esse evento passou no rádio e na televisão, e seria o último discurso de Jango como presidente. Mas Jango havia sido alertado de que, em Minas Gerais, movimentações dos militares começavam a acontecer…
E começa o Golpe!
É óbvio que a direita brasileira estava articulando o fim do governo de João Goulart desde a sua posse; a maior prova disso é a criação do próprio IPÊS, que, de certa maneira, coordenava as ações de militares e do alto empresariado brasileiro. Dessa forma, muitos chamam o período da ditadura de Civil-Militar ou Empresarial-Militar. E durante o discurso de Jango no Automóvel Clube, muitos articulavam uma ação de derrubada do presidente durante as 48 horas restantes. É nessa hora que o embaixador dos EUA, Lincoln Gordon, recebe um telefonema do secretário de Estado dos EUA — Dean Rusk — lhe perguntando o que estava acontecendo. É neste momento que Gordon avisa que há um processo de radicalização se avançando no Brasil. A resposta de Rusk foi de apreensão, pois o plano de auxiliar a direita brasileira com abastecimento de armas e, principalmente, combustível demoraria até 10 dias para se consolidar. Sim, os EUA tinham um plano específico para apoiar o golpe no Brasil, com anuência do próprio presidente dos EUA, Lyndon Johnson, que permitira a elaboração de uma ação de apoio dos EUA aos militares, chamado de Plano de Contingência 2-61.
No Brasil, também havia planos. O centro de insurgência era o estado de Minas Gerais, visto como mais propício para o início do golpe, até porque ali havia maior confluência entre os militares e o setor político — resumindo, as lideranças militares e o então governador de Minas, Magalhães Pinto, queriam Jango fora da presidência. E é em Minas Gerais, mais especificamente em Juiz de Fora, que o general Olympio Mourão Filho — o cara que criou o Plano Cohen — assistia nervoso ao discurso de Jango na televisão, sendo necessário tomar até mesmo uma pastilha de Trinitrina debaixo da língua. Durante aquela tarde, ele já tinha se indisposto com o governador Magalhães Pinto. O motivo era a urgência de uma ação combinada.
O dia 31 de março, quando nada aconteceu…
Já começo pela madrugada, quando, às 2h30, Olympio Mourão acende seu cachimbo (ele imitava o general Patton, de forma bem patética) e se sente pronto para a ação. Às cinco horas, de pijama e roupão de seda vermelho, ele começa os seus “disparos telefônicos”, alertando os aliados de que colocaria suas tropas na rua e iria para o Rio de Janeiro, sede do Ministério da Guerra. Claro, isso tudo consta nas memórias de Olympio, um cara que se dizia alguém que nunca baixara a crista e que se curvava para ninguém, e que morreria pelo Brasil. Lembro que, quando ele teve a oportunidade de gritar aos sete ventos que seu Plano Cohen era fictício, o machão ficou bem quietinho e foi conivente com o Estado Novo — que, inclusive, acabou com o seu partido, a AIB.
Mourão iniciava o processo golpista, para desespero de outra frente de articulação golpista, liderada por Castello Branco, que chefiava um andar do Ministério da Guerra. Informado da pretensão de Mourão, Castello se indigna, pois poderia ser preso caso o “Dispositivo Militar” de Jango agisse. E, de certa forma, o Dispositivo de Jango no I Exército começa a funcionar, com a concentração de tropas para intervenção contra o avanço militar. Apesar disso, Mourão nem havia se movimentado; seu próprio coronel não quis participar, e a decisão conjunta foi a de dar férias para ele. E assim começou o processo — muitos militares não se opuseram a Mourão, apenas pediram licenças ou férias. Ninguém queria se meter no rolo.
João Goulart havia afastado do centro de poder dois generais de altíssima patente que seriam decisivos para o golpe. Falo do general Costa e Silva, enviado para o Departamento de Produção e Obras — muito menos prestigioso do que os anteriores comandos do IV e II Exércitos —, e de Humberto Castello Branco, outro general de quatro estrelas, cuja chefia do Estado-Maior era apenas honorífica, muito pouco para um dos chefes de operações da FEB na Segunda Guerra Mundial, posto que lhe rendera uma briga gigantesca com um velho amigo: o general Kruel, do II Exército. Graças aos políticos conspiracionistas, ambos haviam se aproximado em fevereiro daquele ano. Esses dois generais seriam essenciais na articulação golpista que partia de dentro do Ministério da Guerra e que despedaçou o “Dispositivo Militar” de João Goulart.
Se em Minas Gerais Mourão não partia com suas tropas, à espera de um aliado e desafeto pessoal, o comandante Carlos Luiz Guedes, em São Paulo, o general Kruel apenas esperava, sem colocar o “Dispositivo” de Jango em ação; ele apenas falava ao presidente que o mesmo se distanciasse das lideranças da esquerda para permanecer no poder. E assim o dia vai passando, com Mourão cochilando pela tarde e com uma baixíssima adesão de golpistas no Exército — tudo levava a entender que João Goulart conseguiria evitar mais uma tentativa de golpe militar. Pois lembro vocês: em 1945, os militares afastaram Vargas; em 1955, tentaram colocar a UDN no poder; e, em 1961, novamente houve uma tentativa de impedimento a João Goulart. Ou seja, o Exército tinha como praxe essa intervenção na política brasileira.
Tudo começa a mudar no dia 1º de abril. Mas o que acontece? Percebe-se uma falta de mobilização das esquerdas, ou seja, os fuzileiros e os sargentos da Aeronáutica nada fazem, em Porto Alegre Brizola mal consegue articular a defesa do regime, e Luís Carlos Prestes não consegue arregimentar seus generais aliados, pois seus subalternos não se mostravam dispostos a lutar. Ou seja, Jango começa a perder espaço. Mas o pior estava por vir: o dispositivo não deu certo no III Exército, pois, devido às hostilidades de Castello Branco, o comandante do III Exército foi substituído, e esse vácuo de poder impediu a adesão do III Exército a uma ação legalista.
E assim, tudo piorava para Jango, pois ele decidiu ir para Brasília, a capital que ainda estava incompleta, já que os ministérios ficavam, em grande parte, no Rio de Janeiro. Na sua partida, o comando do I Exército acaba se enfraquecendo, permitindo que Costa e Silva e Castello Branco conseguissem enfraquecer o comando central, colocando o I Exército de fora do dispositivo militar que protegia o presidente. Nesse meio tempo, o então comandante do I Exército se reúne com Kruel, do II Exército, mostrando que ambos não defenderiam o governo de João Goulart. É também nesse dia que o IV Exército, do Nordeste, acaba se rebelando contra o presidente. Então, podemos dizer que o poder militar legalista de João Goulart estava exaurido.
Em Brasília, Jango permanece poucas horas, pois percebe que havia um grande conluio entre as forças políticas civis e os militares — fato, inclusive, que permitiu a sabotagem de um dos aviões que o destinavam a Porto Alegre, para onde partira na madrugada do dia 2 de abril. Nesse meio tempo, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declara vago o cargo da presidência e, durante a madrugada, com direito a luz de velas e faróis de automóveis ligados, faz a menor cerimônia presidencial brasileira, empossando ilegalmente o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, com apoio da embaixada dos EUA e rápido reconhecimento do presidente estadunidense, que o parabenizara ainda durante a madrugada. A partir daí, a Operação Brother Sam, de apoio aos militares da direita pelos EUA, era desfeita disfarçadamente a partir de exercícios militares.
Enquanto o golpe se consumava, Jango chegava a Porto Alegre, onde se encontraria com Brizola, que lhe daria mais notícias ruins — que, basicamente, eram de que os seus generais haviam abandonado a legalidade em prol da manutenção de suas carreiras militares. O próprio general Assis Brasil instigava o presidente a fugir logo, pois ele deveria se apresentar ao Exército; caso contrário, seria tratado como desertor. Apenas alguns políticos gritavam no Congresso apoiando a legalidade e a manutenção de João Goulart na presidência, mas, como veremos a seguir, eles seriam destituídos. Ah, houve sete vítimas nesse processo, a maioria nos conflitos ocorridos no Nordeste — não podemos pensar que não houve nenhum tiro e nenhuma vida tirada. Houveram vítimas, mesmo num movimento movido por interesses pessoais.
Mazzilli era um presidente sem futuro, mas a imprensa associava o golpe ao favorecimento da democracia e da liberdade, erroneamente manipulada pelo IPÊS, que patrocinava grande parte da imprensa do país, alicerçada por famílias tradicionais, muito próximas dos conservadores e pertencentes à elite econômica do país. Não pense numa imprensa democrática e livre, pois, assim como hoje, ela representava o interesse de uma elite econômica — por isso, a positivação da saída de Jango e a negação de um golpe de Estado. Mais tarde, vocês serão apresentados a uma ação de cassação de mandatos, de direitos políticos e ao banimento, tudo isso a partir de um instrumento jurídico inventado pelo jornalista Júlio Mesquita Filho (dono do Estado de São Paulo), com a colaboração do advogado Vicente Ráo, ex-ministro do Estado Novo de Vargas. Juntos, eles vão criar um termo muito utilizado pelos militares, chamado de Ato Institucional.
Ah, mas e os militares? Não acaba por aí, porque, antes mesmo de Mazzilli ser “transformado em presidente”, Costa e Silva assumia o I Exército no Rio de Janeiro e também se proclamava o Chefe do Estado-Maior — ou seja, era ele o general do Estado-Maior mais antigo (mentiroso, mas tudo bem) e, por isso, dele que sairiam as próximas ações a serem feitas na política. Enquanto isso, Jango estava em sua fazenda em São Borja, sobrevoando seus campos, cozinhando e buscando articular seu futuro, agindo mais como um estancieiro do que como um presidente, até o dia 4 de abril, quando rumaria para Montevidéu, no Uruguai.
E assim, Costa e Silva passava a ter o protagonismo do que ele chamava de Revolução — claro que jamais sem o “toque” das elites, como o do empresário Antônio Galloti, presidente da Light (empresa de energia elétrica do Rio de Janeiro), que exaltava a necessidade de cassação dos direitos políticos dos apoiadores de Jango. Então, em 8 de abril, Costa e Silva emitia (em conjunto com Castello Branco e outros generais da alta cúpula) o chamado Ato Institucional, que tinha 11 artigos, nos quais aumentava o poder do presidente, dando-lhe poder para cassar mandatos políticos por 10 anos nos próximos 60 dias e demitir funcionários públicos pelos próximos 6 meses. Neste contexto, é anunciada a eleição presidencial indireta pelo parlamento, que ocorreria no dia 11. Governadores, empresários e militares se unem e lançam o nome de Castello Branco à presidência — ao contrário do que Costa e Silva esperava, pois ele pretendia ocupar esse cargo. Claro que, no dia 10, diversos opositores tiveram seus direitos políticos cassados por 10 anos, garantindo que não haveria oposição. E assim, na tarde de 11 de abril de 1964, numa votação super aberta (deveria ser nominal e pronunciada em voz alta), o único candidato, Humberto Castello Branco, é eleito por 361 votos contra 72 (esses foram corajosos), tornando-se presidente/ditador até 1966, quando, iludidos, alguns políticos conservadores achavam que a sua “democracia” voltaria a favorecê-los — mas já vou dar um spoiler: isso não acontece!
E assim, nós temos o Golpe Militar, sem disparar nenhum tiro (alguns, no Nordeste tivemos 3 mortos e no Rio 4), com amplo apoio “popular” — na verdade, imprensa manipulada pelo IPÊS —, onde Mazzilli foi empossado presidente de forma ilegal pelo presidente dos EUA no dia 2 de abril. Porém, Costa e Silva se achava o manda-chuva desde o dia 1º, quando assumia, por força de patente, o comando do Exército. E no dia 4 Jango vai embora, enquanto militares e lideranças políticas articulavam por uma forma de governo transitória, cuja eleição do dia 11 de abril mostrou-se totalmente antidemocrática. E agora, você acredita nessa historinha de Revolução?
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
MEMORIAL DA RESISTÊNCIA DE SÃO PAULO. Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). Disponível em: https://memorialdaresistenciasp.org.br/lugares/instituto-de-pesquisas-e-estudos-sociais-ipes/. Acesso em: 13 jul. 2025.
REIS, Daniel Aarão (org.). Modernização, ditadura e democracia: 1964–2010. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
USTRA, Carlos Alberto Brilhante. A verdade sufocada: a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça. 4. ed. Brasília: Editora Ser, 2007.
VILLA, Marco Antonio. Ditadura à brasileira: 1964–1985: a democracia golpeada à esquerda e à direita. São Paulo: Leya, 2014.