Revista História e Jogos

História

Edição 2026

Autor: João Henrique Couto Scotto

O Infanticídio em Esparta – uma análise a partir de Assassin’s Creed Odyssey

Estamos em Megaris e o meu personagem escolhido (Alexios) [1]está num dilema com seu pai espartano, um “famoso” general chamado Nikolaos (apelidado de Lobo). Aqui nós vemos as memórias de Alexios vindo à tona e nelas a sua irmã ainda bebê tinha seu destino escolhido por anciãos espartanos – ela seria jogada num precipício. A intervenção de Alexios faz com que o ancião caia junto e com isso, o menino é sentenciado a morte, algo feito pelo seu próprio pai!

[1] eu poderia ter escolhido um personagem feminino (Kassandra)

Você pode assistir ao vídeo sobre o tema por aqui

Afinal de contas, havia essa prática de infanticídio em Esparta?

Bom, aqui é importante apontar de onde saiu esta história, e ela vem primeiramente de Plutarco, um historiador romano que ao analisar a vida de Licurgo, um legislador grego que vivera 700 anos antes do próprio, fala sobre algumas características de Esparta presentes até hoje. É com Plutarco que surge essa explicação sobre a análise dos bebês pelos anciãos de Esparta. Então, esses anciãos ou melhor, o Conselho dos anciãos (Gerúsia) observaria a saúde do bebê e decidiria se ele poderia ser criado. Caso o bebê não se mostrasse apto ou apresentasse uma deformação, ele seria enviado para o apothétai, lugar de exposição. E Plutarco relaciona esse lugar a uma fossa na base do monte Taígeto. A justificativa é que não seria bom nem para o bebê tampouco para Esparta uma vida sem saúde e força desde o princípio.

Mas no jogo essa cena é meio diferente né, pois as crianças são jogadas num precipício, algo idealizado posteriormente a partir de interpretações próprias sobre o relato de Plutarco, já que o apothétai, é um local específico do monte Taígeto interpretado também como uma fenda ou abismo, daí a sugestão do jogo de que as crianças eram jogadas precipício abaixo.

É importante pensarmos nessa questão sobre o infanticídio da Grécia, pois tirando Plutarco, os relatos existentes afastam essa possibilidade como prática política grega. Por exemplo, o mesmo Plutarco que define essa condição espartana de viver ou morrer a partir da existência ou não de deformidades, se contradiz ao falar sobre o rei espartano Agesilau II, pois ele mesmo apresentava deformidade nas suas pernas. Além disso, ao analisar as leis espartanas ou de outras pólis gregas, não encontramos nenhuma referência ao infanticídio.

Continuando a partir de relatos gregos, é legal lembrarmos que alguns pensadores bem famosos, como Sócrates, Platão e Aristóteles, abordavam a questão da permanência dos bebês considerados deformados na sociedade. Na República de Platão, ele descreve a ideia de Sócrates de que as crianças “inferiores” deveriam ser escondidas e ao responder essa obra, Aristóteles na obra A Política, afirma que: “§ 10. Com respeito a conhecer quais os filhos que devem ser abandonados ou educados, precisa existir uma lei que proíba nutrir toda criança deforme.” (Aristóteles, p. 150)

O que eu quero dizer é que se essas idealizações são debatidas por ambos, é porque nos estados constituídos, não havia uma prática de infanticídio ou de exclusão promovida pelos governos. Se havia abandono e morte, provavelmente eram práticas sociais e culturais, porém, elas não são descritas ou observáveis pela arqueologia. E aqui é o ponto onde o estudo de Deeb Sneed (2021) vai ganhar espaço. Para a pesquisadora, além da falta de evidências encontradas nos escritos antigos, a partir dos restos materiais, também não é possível apontar o infanticídio como uma prática da cidade de Esparta.

Uma questão importante é a análise do Corpus Hippocraticum, ou seja, do conjunto de textos independentes escritos por médicos anônimos entre a segunda metade do século V a.C. e o fim do período helenístico; a maioria data do final do século V e IV a.C. Os procedimentos não incluíam matar ou criar uma criança com alguma deficiência, mas aponta para não causar danos ao bebê durante o parto assim como alguns procedimentos em caso de algum problema como pé torto e braço de doninha, nestes casos, os tratamentos sugeridos buscavam melhorar a condição de vida da criança, não a sua morte.

Se os procedimentos médicos não apontam para uma prática de infanticídio ou para uma política amplamente aceita para este fim, outras evidências arqueológicas colocam em dúvida o infanticídio proposto por Plutarco. Por exemplo, algumas evidências arqueológicas mostram mamadeiras junto a bebês, crianças e até adultos. Apesar destes receptáculos não serem tão recorrentes, alguns deles apresentam vestígios de leite, o que sugere que há sim uma possibilidade de cuidado a crianças com dificuldade na alimentação, aliás, esses receptáculos também são encontrados entre os mais velhos, sugerindo uma tentativa de cuidado se caso ocorresse alguma restrição alimentar por determinada pessoa. Apesar de não sabermos ainda o uso destas “mamadeiras” podemos manter a hipótese de cuidado em aberto.

No jogo nós não temos um assassinato ocorrido devido a alguma observação de deficiência feita pela Gerúsia, na verdade, o sacrifício era necessário para manter Esparta longe da destruição, e isso não afasta que algumas crianças devem ter sido eliminadas devido a paranoias como esta. Estes eventos podem ter ocorrido, seja devido a ritual religioso, restrição alimentar e também por problemas físicos, porém, como podemos perceber, não há uma evidente interferência de cidades ou de governos neste processo.

Albert Eckhout, Dança dos índios Tapuias (c. 1641–1644). A obra expressa o olhar colonial europeu, no qual o indígena é observado e controlado, enquanto sua cultura é transformada em objeto de dominação e exotização.

Referências Bibliográficas

PLUTARCO. Vidas paralelas: Licurgo. Tradução de Bernadotte Perrin. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1914. (Loeb Classical Library).

PLATÃO. A República. Tradução de Paul Shorey. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1935. (Loeb Classical Library).

ARISTÓTELES. Política. Tradução de H. Rackham. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1932. (Loeb Classical Library).

SNEED, Debby. Disability and infanticide in ancient Greece. Hesperia, v. 90, n. 4, p. 647–712, 2021. DOI: 10.2972/hesperia.90.4.0647.

HIPÓCRATES. Sobre as articulações. In: HIPÓCRATES. Corpus hippocraticum. Tradução de W. H. S. Jones. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1923. (Loeb Classical Library).

HIPÓCRATES. Epidemias. In: HIPÓCRATES. Corpus hippocraticum. Tradução de W. H. S. Jones. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1923. (Loeb Classical Library).