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Por João Henrique Couto Scotto

A Evolução Humana em Ancestors: The humankind Odyssey

Apresentando o jogo Ancestors: The Humankind Odyssey

Nossa aventura pelo jogo Ancestors: The Humankind Odyssey, ou, em bom português, Ancestrais: A Odisseia da Humanidade, buscará analisar a evolução dos grandes primatas pré-humanos no continente africano. Então, vamos entender um pouco (bem pouquinho) sobre o jogo para início de conversa.

Para quem não sabe, o jogo Ancestors: The Humankind Odyssey foi lançado em 2019 para PS4, Xbox One e Windows. Resumidamente, ele se propõe a simular a “evolução” da espécie humana, começando há cerca de 10 milhões de anos no continente africano. No início, o jogador começa em uma região de floresta e, segundo o “fandom” do jogo, a espécie com a qual iniciamos não possui um nome definido. Ela é considerada o “elo perdido” — a espécie mais antiga da nossa linha evolutiva, situada entre os seres humanos e os gorilas, por exemplo.

Elo perdido? As espécies pré-humanas no jogo e na nossa árvore evolutiva

Logo no início do jogo, me deparo com um aviso:
“O mundo e os personagens que você vai encontrar foram feitos para representar arquétipos de um local e momento e não são uma representação exata do que ocorreu. Baseado nas últimas descobertas científicas.”

Fiquei até positivamente surpreso, afinal, a proposta não se esquiva da responsabilidade de buscar e integrar o conhecimento científico em sua narrativa. De fato, o jogo começa ambientado há cerca de 10 milhões de anos, no continente africano — um local e período em que os pesquisadores procuram a espécie que nos conecta aos chimpanzés e gorilas, por exemplo.


É importante ressaltar que, nesse período, não há evidências de uma espécie já em busca do bipedalismo (característica marcante da nossa linha evolutiva). No entanto, sabe-se que havia várias espécies de hominídeos habitando a região do Rift Africano.

O que é esse Rift Africano?

Uma cena inicial nos apresenta o contexto em que começaremos o jogo. Estamos na África, jogando com uma espécie de hominídeo desconhecida, que o jogo descreve como o “elo perdido”, em um período que remonta a cerca de 10 milhões de anos.

Gostaria de destacar, primeiramente, o provável cenário em que o jogo se passa, que identifiquei como a região da África Oriental, mais especificamente o Rift Africano. Analisando o mapa e a ambientação do jogo, nota-se algumas características típicas dessa região, evidentes no relevo e na vegetação. O cenário inclui áreas montanhosas, depressões com lagos e também zonas litorâneas.

Quanto à vegetação, ela varia entre floresta e savana, apresentando até algumas características desérticas. No entanto, em minha interpretação, essas áreas ainda remetem a uma savana, com nuances dentro desse ecossistema.

A ideia de elo perdido

Começamos o jogo com uma criança perdida na selva, após uma águia atacar e matar um de seus pais (não me recordo se era o pai ou a mãe). Assustada, a criança se esconde, e a partir daí assumimos o controle de um membro do clã, cuja missão é resgatar o filhote desaparecido. À primeira vista, parece que estamos guiando um macaco. No entanto, vou me atrever a invadir o campo da biologia para afirmar que o personagem não é exatamente um macaco.

Vou me aventurar brevemente no campo da biologia, apenas para esclarecer que, na divisão taxonômica feita pela Biologia, o personagem inicial do jogo pertence à Ordem dos Primatas e à Família dos Hominidae (hominídeos), que inclui os grandes primatas. As primeiras espécies dessa família surgiram há cerca de 14 milhões de anos.

O termo “macacos” é comumente usado para se referir a todos os primatas não humanos que existem atualmente. Contudo, dentro da Biologia, o gênero Macaca existe e não pertence à Família dos Hominidae. Portanto, de forma alguma estamos jogando com um “macaco”. Aliás, já aproveite para esquecer a ideia de que “viemos dos macacos” — essa é uma concepção equivocada.


Aqui nós temos um exemplo desta tal Divisão Taxonômica

Sabemos que a Ordem é Primata e a Família é dos Hominídeos. Mas, então, qual seria o Gênero e a Espécie? Propositalmente, o jogo não especifica essas classificações. Isso porque ele trabalha com a ideia de que o personagem inicial, o “elo perdido”, é um ancestral comum que dará origem às linhas evolutivas dos chimpanzés e dos humanos.

Conforme já mencionado, começamos o jogo em uma linha temporal de aproximadamente 10 milhões de anos atrás, assumindo o controle de um primata primitivo desconhecido. O jogo foi bastante assertivo nesse aspecto: é praticamente impossível identificar um “elo perdido” específico entre os humanos e outras espécies de primatas, especialmente considerando a grande diversidade de hominídeos que coexistiram durante o mesmo período e que poderiam ter dado origem à nossa espécie.

Para ampliar nossa compreensão da linha temporal, podemos começar pela extinção dos dinossauros, há cerca de 65 milhões de anos. Nesse período, já existiam pequenos mamíferos, como roedores, que dariam origem aos primeiros primatas entre 50 e 35 milhões de anos atrás. Os hominídeos — ou, mais precisamente, os primatas da família Hominidae, caracterizados pelo grande porte — surgiram por volta de 14 milhões de anos atrás.

No contexto do jogo, a narrativa aborda uma dessas diversas espécies que habitavam a região do Rift Africano, uma área marcada pela transição entre florestas densas e regiões mais secas, do tipo savana.

Os Hominídeos podem ser generalizados como sendo grandes primatas com capacidades bípedes, mesmo que não sejam completamente bípedes. Das diversas espécies de Hominídeos saíram outras espécias além da Humana, como a dos Gorilas, Bonobos, Orangutangos e Chimpanzés. É interessante a observação de Condemi e Savatier (2019) acerca dos estudos realizados até então a partir de fósseis de Hominídeos:
[…] duas coisas fascinantes: primeiro, que a evolução dos hominídeos sempre foi incontestável, quer dizer que várias espécies próximas coexistiram quase constantemente ao longo dos últimos sete milhões de anos. Segundo, que durante esse período, os hominídeos passaram por uma série de importantes estados evolutivos, ou seja, períodos no decorrer dos quais diversas formas próximas, possuindo quase as mesas estruturas corporais e modos de vida coexistiam.

Daí foi acertada a escolha dos produtores do jogo em manter o primeiro “elo” em suspenso, aliás, as demais espécies que aparecem no jogo não devem ser tratadas como exclusivas da nossa linha evolutiva, portanto, este é um momento importante para abordarmos os Gêneros e Espécies presentes no jogo.

As espécies pré-humanas e humanas no jogo

Na Biologia, observamos que o gênero é um grupo que reúne espécies com um ancestral comum. Por exemplo, o leão e o tigre pertencem ao gênero Panthera, e seus nomes científicos em latim são Panthera leo e Panthera tigris. Nesse contexto, nós somos humanos porque pertencemos ao gênero Homo, cuja espécie é Homo sapiens (ou “humano sábio”).

Encerramos aqui nossa jornada pela Biologia, pois o conceito de ser humano não pode se limitar à ideia de alta capacidade intelectual e bipedismo. Nossa definição como humanos também passa por nossas relações sociais e culturais complexas, que são fundamentais para nos caracterizar.

No entanto, no jogo, as espécies apresentadas não pertencem ao gênero Homo, mas a outros gêneros da nossa árvore evolutiva. Por isso, algumas delas podem ser descritas como pré-humanos, já que possuem características que associamos a nós, como o bipedismo, mesmo que de forma oportunista.

Podemos falar em três etapas evolutivas, desde os primeiros hominídeos que viviam nas árvores no continente africano até a consolidação da forma bípede. Na primeira fase, encontramos espécies de hominídeos que ainda possuíam um bipedalismo parcial, ou seja, tinham a capacidade de adotar uma postura bípede, mas sem exercer o bipedalismo de forma permanente. Entre essas espécies — que são diversas, muitas ainda desconhecidas e algumas tão similares em suas características fósseis que não podemos descartar a possibilidade de serem as mesmas — destacam-se algumas que podemos explorar (ou não, já que, como mencionei, o jogo é bastante difícil e demorado).

Sahelanthropus tchadensis (Toumai)

No jogo é a primeira espécie que nós “evoluímos” a partir da nossa espécie inicial (aquela desconhecida). As possibilidades temporais apresentadas no jogo variam entre 9 milhões até 7,1 milhões de anos atrás. Atualmente, esta é a espécie mais antiga conhecida na ramificação que pode ter levado até nós. O Toumai foi descoberto pelo francês Michel Brunet, que, a partir do crânio, concluiu que um orifício subcraniano conectado à medula espinhal sugere que o bipedalismo já estava em desenvolvimento nessa espécie. Quanto ao período em que viveu, estima-se que tenha existido entre 6 e 7 milhões de anos atrás. As poucas evidências fósseis disponíveis não permitem compreender detalhes do cotidiano dessa espécie, mas é provável que sua dieta fosse baseada no consumo de folhas, frutas, sementes, raízes, nozes e insetos.

Orrorin Tugenensis 

Esta é a “segunda espécie” conhecida no sistema de evolução presente no jogo. Conseguimos “evoluir” para esta espécie no game em um período que vai de 7,2 milhões a 5,5 milhões de anos atrás. Estudos atuais sugerem que essa espécie surgiu na região do atual Quênia por volta de 6 milhões de anos atrás. O Orrorin foi descoberto pelos paleontólogos Brigitte Senut e Martin Pickford, que encontraram uma dúzia de fósseis em três locais distintos no Quênia. A hipótese de bipedalismo baseia-se na análise do fêmur, enquanto a característica arborícola (indicando que viviam em árvores) foi sugerida pela análise do polegar encontrado. Sua aparência seria semelhante à de um chimpanzé moderno, mas com uma dentição parecida com a dos humanos modernos.

Ardipithecus ramidus

A terceira espécie apresentada no jogo meio que ignora seu predecessor, o Ardipithecus kadabba, que viveu entre 5,8 e 5,2 milhões de anos atrás. De qualquer forma, o Ardipithecus ramidus possui uma possibilidade de “evolução” no jogo entre 5,5 e 3,9 milhões de anos atrás. Na realidade, o Ardipithecus ramidus viveu por volta de 4,4 milhões de anos atrás, apresentando características que sugerem um bipedismo que podemos chamar de “oportunista” (assim como pode ter ocorrido com outras espécies pré-humanas que o antecederam).


Quando falamos em bipedismo oportunista, isso se refere ao fato de que seus pés pareciam ser bem adaptados à marcha. No entanto, a presença de um polegar opositor, semelhante ao encontrado em chimpanzés, provavelmente limitava a eficácia do bipedismo. Esse mesmo polegar sugere uma facilidade na escalada de árvores, característica reforçada pelos dedos alongados das mãos.

A origem do nome Ardipithecus (que significa “solo”) e Ramidus (“raiz”) está relacionada à crença de que esta seria a espécie de origem da nossa linha evolutiva. Isso se deve ao fato de que sua dentição e o formato do quadril afastam qualquer ligação direta com os chimpanzés, tornando o gênero Ardipithecus um gênero pré-humano definitivo.

Seus fósseis foram encontrados em uma região associada a uma fauna altamente arborizada, o que contradiz a ideia de que o bipedalismo tenha sido provocado por mudanças na vegetação. Em relação à sua alimentação, estudos indicam uma grande probabilidade de que o Ardipithecus ramidus fosse onívoro. Ele consumia carne, frutas e vegetais, mas evitava raízes, conforme observado no esmalte de sua dentição.

Australopithecus Afarensis

Essa é a quarta espécie na linha “evolutiva” apresentada no jogo, onde, ao jogarmos, podemos “evoluir” entre 3,9 e 2,5 milhões de anos atrás. O gênero Australopithecus já é bastante conhecido, e a espécie afarensis é notável por sua longevidade. Estudos sugerem que essa espécie, em particular, pode ter existido por quase 1 milhão de anos, entre 3,85 e 2,95 milhões de anos atrás.

Há também muitas evidências fósseis que a comprovam, sendo a mais antiga encontrada nas famosas pegadas de Laetoli, na atual Tanzânia. Essas pegadas foram preservadas após o vulcão Sadiman cobrir o solo com uma camada de cinzas vulcânicas de aproximadamente 15 centímetros de espessura. Quando três indivíduos de Australopithecus afarensis caminharam por ali, deixaram suas marcas, que chegaram até nós como um registro inestimável.


O nome dado a esse gênero humano, Australopithecus, deriva do latim e significa “macacos do sul”, em referência ao fato de seus primeiros fósseis terem sido descobertos no sul da região do Grande Rift.

Voltando às pegadas de Laetoli, encontramos uma forte evidência de uma segunda etapa evolutiva relacionada ao bipedalismo verdadeiro. Isso pode ser observado no dedo do pé (hálux, ou nosso dedão), que não era opositor e estava alinhado com os outros dedos, assim como ocorre em humanos modernos. No entanto, a planta do pé sugere que o maior apoio durante a caminhada estava próximo ao calcanhar, indicando que sua passada não era exatamente como a nossa.

As mãos também apresentavam diferenças significativas. Apesar do polegar ser adaptado para um movimento em gancho, elas ainda mantinham características arborícolas. É possível que essa espécie construísse ninhos sobre árvores, como fazem os chimpanzés. Um exemplo disso pode ser observado na análise de Lucy, o fóssil mais famoso de Australopithecus afarensis. Estudos indicam que Lucy pode ter morrido em consequência de uma queda de árvore, reforçando essa hipótese.

Quanto à dieta, o afarensis era predominantemente herbívoro, consumindo folhas, frutas e outros vegetais. Há também evidências de que eles ocasionalmente se alimentavam de pequenos animais, como lagartos.

Australopithecus Africanus

A última espécie jogável no jogo é o Australopithecus africanus, que pode ser jogada entre 2,5 e 2 milhões de anos atrás, enquanto os estudos indicam que essa espécie tenha existido entre 3 e 2,6 milhões de anos atrás. De maneira geral, o africanus possuía membros posteriores mais longos em comparação ao afarensis, o que aproxima sua anatomia do gênero Homo.

O jogo não apresenta outras espécies de Australopithecus já conhecidas, como o A. garhi e o A. sediba (este mais recente, vivendo há cerca de 2 milhões de anos). Além disso, outras espécies próximas, como os Paranthropus robustus e Paranthropus boisei, que para alguns são consideradas do mesmo gênero, também não são apresentadas.

De maneira geral, os Australopithecus no jogo são retratados como caçadores-coletores. No entanto, não há evidências de que eles caçassem ou utilizassem instrumentos para tal fim. Na realidade, sabemos que eles eram mais frequentemente presas de grandes felinos, como leões, além de outros predadores.

Um debate sobre a Evolução a partir da prática do jogo Ancestors

A prática do jogo, por si só, não é um instrumento de compreensão da evolução humana. Não esqueçamos, ele (o jogo) é um produto da indústria cultural, logo, é um produto voltado para o mercado (lucro). Apesar da sua narrativa e representações gráficas buscarem uma concepção próxima do conhecimento científico vigente, a própria necessidade de dinâmica na jogabilidade impõe a necessidade de PROGRESSÃO, com isso, a forma de evolução apresentada no jogo aparece de forma linear, do tipo Pokémon (desculpa Pikachu, eu sei que você não quis evoluir mais além) nos levando a uma ideia de que evoluir é progredir, como aparece no próprio logo do game. Então, vamos para a primeira comparação, abordando a linha “evolutiva” apresentada no jogo e como ela é vista atualmente.

A concepção de Evolução das espécies foi consagrada por Charles Darwin, que publicou a Origem das Espécies em 1859. A ideia central era de que a evolução, chamada por ele descender com modificações era possível através de um modelo conhecido até hoje como Seleção Natural. Ele observava basicamente que características herdáveis são passadas dos progenitores para os descendentes, resultando em variações em cada geração. A competição por recursos limitados faz com que nem todos sobrevivam ou se reproduzam. Indivíduos com características vantajosas em um ambiente específico têm maior probabilidade de sobrevivência e deixam mais descendentes. Essas características úteis se tornam mais comuns ao longo das gerações, permitindo que a população se adapte ao ambiente. Assim, a seleção natural impulsiona a evolução. Mas será que o jogo mostra dessa forma? E como esse processo é explicado com relação ao nosso surgimento?

A prática do jogo nos direciona a explorar, identificar elementos ao nosso redor, experimentar alimentos, criar ferramentas, acasalar, superar medos e manter a alimentação e o sono. Dentro dessas possibilidades (e talvez eu esteja esquecendo de algumas), o jogo introduz um elemento chamado neuronal. Esse elemento representa o aumento das conexões entre os neurônios, permitindo ao personagem adquirir novas habilidades, como melhorar a percepção (olfato, visão e audição), habilidades motoras, memória, entre outras.

A mudança de gerações no jogo permite preservar algumas dessas conexões neuronais. Além disso, existe um elemento chamado mutação genética, no qual uma criança pode nascer com uma capacidade genética específica que se manifestará na vida adulta e será transmitida para as gerações seguintes. Um exemplo de mutação seria ter maior tolerância a determinado tipo de alimento. Vale ressaltar que essas mutações genéticas não interferem diretamente na mecânica de evolução dentro do jogo.

Portanto, no contexto do jogo, a evolução ocorre basicamente por meio da exploração e da aprendizagem, numa abordagem que me pareceu excessivamente centrada no aspecto cognitivo.

Pois é, nós não evoluímos apenas por meio da observação do ambiente, da exploração de novos lugares e da aprendizagem. Essa abordagem cognitiva é frequentemente confundida com a ideia de “aperfeiçoamento”, baseada em perspectivas da nossa sociedade atual (como as competências e habilidades propostas pela BNCC). No entanto, as diversas adaptações das espécies pré-humanas e humanas ocorreram devido a múltiplos fatores.

Uma das correntes mais aceitas atualmente é a da influência cultural nesse processo. Além disso, outra hipótese interessante é a da influência tectônica, segundo a qual as transformações que criaram fissuras e cadeias de montanhas no Rift Africano causaram alterações climáticas significativas. Essas mudanças modificaram a vegetação da região e “forçaram” algumas espécies de hominídeos a adotarem o bipedismo como forma de adaptação.

É importante destacar que as possibilidades para as adaptações das espécies pré-humanas e humanas ainda estão em debate. Para encerrar nossa jornada no jogo, apresentarei algumas das hipóteses mais recentes.

Vamos desvendar nosso processo de “evolução” a partir da ideia de cultura. No jogo, essa percepção cultural aparece de forma tímida, seja na formação de um casal por meio do “catar de piolhos”, na mudança de assentamentos com a migração em grandes grupos ou na aprendizagem em grupo, habilitada pela “melhoria neuronal” apresentada no game. Esses elementos culturais estão presentes, mas poderiam ser abordados de forma mais aprofundada.

Por exemplo, no início do jogo, somos apenas presas (apesar da peculiaridade de, mais tarde, desenvolvermos habilidades de caça e nos tornarmos predadores). O que fazemos nessa condição inicial? Apenas fugimos, preferencialmente subindo em árvores. Com o progresso no jogo, adquirimos a capacidade de matar nossos predadores, mas isso não reflete a realidade das espécies jogáveis apresentadas.

Um elemento social e cultural ignorado na jogabilidade é o fato de que essas espécies primitivas eram altamente sociais. Elas vigiavam e protegiam-se mutuamente, utilizando sua capacidade de comunicação para alertar o grupo sobre perigos. Um exemplo disso é o grito agudo, um som que ainda nos causa arrepios (quem nunca se incomodou com o barulho de um giz raspando no quadro?). Essa interação social era crucial para a autodefesa contra predadores.

Falando em predadores, o jogo até apresenta alguns deles, como o Machairodus, o crocodilo de Thorbjarnarson, a píton-africana, a águia, entre outros, que surgem conforme avançamos na narrativa. No entanto, o principal “acelerador” do processo de evolução que levou ao surgimento do gênero Homo — como propõe o jogo — não foi apenas a sobrevivência individual, mas, acima de tudo, a cultura.

A Cultura como acelerador da evolução

Lembrando mais uma vez, o jogo aborda a evolução basicamente pré-humana, ou seja, a partir de 10 milhões de anos atrás, começando com uma espécie desconhecida e passando por gêneros pouco pesquisados, como Sahelanthropus e Orrorin, até outros com mais evidências fósseis, como Ramapithecus e duas espécies do gênero Australopithecus. Quando terminamos o jogo, vemos o surgimento do gênero Homo, com a espécie Ergaster.

No entanto, essa “evolução” que leva aos primeiros humanos não foi tão linear e cognitiva como o jogo sugere, e esse é o objetivo deste artigo: mostrar como o início do nosso processo evolutivo, conforme é percebido na prática do jogo, difere da realidade científica. A evolução humana não seguiu um caminho puramente cognitivo e adaptativo, como frequentemente é retratado, mas envolveu uma complexa interação de fatores biológicos, culturais e ambientais.

 

A minha proposta aqui é destacar como a cultura foi o principal motor desse processo evolutivo, permitindo que, ao contrário de outras espécies, o gênero Homo desenvolvesse uma capacidade social e cultural completamente distinta de qualquer outra forma de vida no planeta. Essa capacidade única de construir e transmitir conhecimento, de criar estruturas sociais e simbólicas complexas, foi um fator decisivo na evolução humana, indo além das adaptações físicas ou cognitivas simples.

A cultura é um conjunto de características compartilhadas por um grupo determinado, englobando comportamentos, símbolos e ideias que se consolidam e são transmitidos entre seus membros, atravessando gerações. No caso das espécies de Australopithecus, o bipedismo desempenhou um papel fundamental, permitindo a elaboração de ferramentas rudimentares de pedra, processo que, segundo alguns estudos, teria ocorrido entre 3,3 e 2,8 milhões de anos atrás. Fabricar ferramentas é, sem dúvida, um fenômeno cultural, que possibilitou a transmissão de técnicas entre as linhagens de Australopithecus, promovendo um ciclo de evolução impulsionado pela combinação de fatores como o bipedismo, que liberava as mãos para o manuseio de ferramentas, e a cultura, que permitia a transmissão dessas técnicas.

Um elemento crucial para essa transmissão cultural era a higiene social. Estudos sugerem que os Australopithecus dedicavam cerca de 20% de seu tempo a atividades de cuidado mútuo, como o catar piolhos, prática que o jogo ilustra. Esse comportamento também é observado em chimpanzés e outros hominídeos, que dedicam cerca de 16% de seu tempo a ações semelhantes, como o uso de galhos para abrir frutos e construir seus ninhos. No entanto, o que distingue os Australopithecus de outros hominídeos é a conjunção do bipedismo com a cultura, que não está presente em outras espécies.

Ao refletirmos sobre a proposta de Condemi e Savatier (2019), podemos entender que nossa evolução foi potencializada por um ciclo amplificador: maior bipedismo — maior estatura, cognição e mobilidade para explorar — o que gerava mais bipedismo, e assim por diante. Contudo, é importante destacar que a cognição que estamos discutindo não é a mesma apresentada no jogo, onde a aprendizagem ocorre por observação e exploração. No jogo, a evolução é tratada como um processo puramente cognitivo, em que novas habilidades surgem com base na exploração do ambiente, mas isso não se traduz no desenvolvimento do neocórtex, a camada do cérebro relacionada à cognição mais avançada.

A cognição relevante para nossa evolução foi aquela associada a práticas como o catar piolhos, que envolvia o cuidado corporal mútuo, o fortalecimento dos laços sociais e a transmissão cultural. Portanto, o que permitiu o surgimento do gênero Homo (como o jogo propõe) não foi apenas o bipedismo, mas a combinação desse com a cultura, que propiciou o desenvolvimento de técnicas como o entalhe de pedras. Essas práticas exigiam uma comunicação mais complexa, o que, por sua vez, impulsionou o desenvolvimento de um bipedismo cada vez mais aprimorado para liberar as mãos e possibilitar outras funções.

Esse desenvolvimento físico incluiu adaptações como o encurtamento dos dedos, maior velocidade nos ombros, fortalecimento do pescoço e outras mudanças que favoreceram uma maior capacidade comunicativa e social. Esses elementos físicos, em conjunto com as práticas culturais, fortaleceram a cultura desses grupos. Embora existissem outros grupos de hominídeos que também desenvolveram o bipedismo, como o gênero Paranthropus, esses não conseguiram alcançar as características associadas ao gênero Homo, como a produção de ferramentas mais complexas e o aumento exponencial do cérebro. O fator ausente nesses grupos foi a combinação entre bipedismo e uma cultura de comunicação e transmissão de conhecimentos que permitiu o desenvolvimento das características que conhecemos como tipicamente humanas.

Bibliografia

CONDEMI, Silvana; SAVATIER, François. As últimas notícias do Sapiens: uma revolução nas nossas origens. Tradução de Mauro Pinheiro. São Paulo: Vestígio, 2019.

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HECHT, Jeff. Evolution in the Grand Canyon. Geotimes, jan. 2008. Disponível em: https://web.archive.org/web/20210415025521/http://www.geotimes.org/jan08/article.html?id=feature_evolution.html. Acesso em: 17 dez. 2024.

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NORONHA, Carina. O Grande Vale do Rifte na África Oriental. Igeológico, 9 dez. 2019. Disponível em: https://igeologico.com.br/o-grande-vale-do-rifte-na-africa-oriental/. Acesso em: 17 dez. 2024.

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SMITHSONIAN INSTITUTION. Research. Human Origins Program. Disponível em: https://humanorigins.si.edu/research. Acesso em: 23 dez. 2024.

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